Crônica: DULCE NEVES – A DIVA QUE RECUSOU A “VISIÑANSA DI SIN SIÑOR!”  

No augusto mês de Agosto que acabou de despedir-se de nós, fizemos, aliás, rendemos a justa e merecida homenagem à exímia cantora guineense, Dulce Neves. Tive, por vício de ofício, a oportunidade de tecer algumas sábias palavras sobre a sua carreira musical. Mas, como devem saber não privo de sua amizade, porém fui o mentor da ideia de promover este evento, indicando o nome dela aos colegas da AGE (Associação Guineense de Escritores), para que a homenageássemos.

Coube-me, portanto, a parte da Conferência, por indicação, quase que imposta, de Edison Ferreira, também ele Escritor e Secretário-Executivo da AGE.

Assim, teci, com a engenharia linguística que me é peculiar, casando o Kriol ao Português, o presente texto:

A música faz-se, creio eu, no compasso da espera; ou, quiçá, no ritmo do desespero; ou talvez através da melodia única, a qual harmonizando a palavra ao canto, provoca em nós os nós dançantes do prazer do encanto.

Assim, repensando os anos da bravura, os anos de muita luta, e o longo caminho percorrido pela cantora e compositora, Dulce Neves, até o ano de 1996, quando edita seu 1º álbum solo, e recuando-nos no tempo, chegamos ao ano de 1975, quando ela deu início à brilhante carreira. Portanto, foram 20 anos de espera; mas que, efetivamente, não a exasperou.

Nesse lapso de tempo foram mais 5 anos, isto é, 2001 para que ouvíssemos, de novo, sua voz singular. 7 anos depois (2008) sai a sua terceira lavra musical, e computados mais 8, o quarto.

Ora, o destino quis que assim fosse, e ao que tudo indica  – mas que os matemáticos de plantão me perdoem -, D. Neves, “a ña i ñara sikidu bô”.

  1. A comilança em três tempos

O passado, o presente; talvez certamente, o futuro, faz com que:

KATCHUS KU KUME AONTI

Ê KUME AÓS

Ê SINTA (MAS) PA KUME AMAÑA.

Se assim é trata-se, sem dúvida, do fato de que esta alegoria do cume da dominação fez com que a cantora recusasse esta maldita ‘VIZIÑANSA DI SIN SIÑHOR’.

Convoco aqui pelo mesmo diapasão, Franz Fanon, para quem era preciso que os colonizados se acautelassem no sentido de se tornarem também eles nos colonizadores de seus próprios conterrâneos. Ou seja, aquilo que magistralmente encontramos na poemúsica do Mama Djombo:

TUGAS KURI Ê BAI,

TUGAS DI TERA FIKA,

Ê NA SORONDA

IMPERIALISMO NA SORONDA (AVANSA NA NÔ KOITADESA – ES LI I DI MI).

Para dizer que a cantora, chama-nos a atenção, pois o imperialismo com seus tentáculos largos, longos, e quiçá duradouros, poderá sufocar as conquistas nacionais alcançadas com sangue e suor dos nossos combatentes. E, em primazia, pelo nosso povo.

  1. A sempiterna figura da mulher

A vida da mulher guineense merece e mereceu sempre um tratamento especial da nossa homenageada; mesmo quando esta

MINDJER TRISTI

FUGON PAGA KU EL

É ela que faz esforços pois, como disse ela e bem

NNA SUFRIFUR KU TA PADI FIDALGU

I TA PADIL OH

Entretanto, como qualquer outra mãe, a mãe sofredora, porque consoladora, dará à luz sempre a um filho ou a uma filha fidalgo ou fidalga. Pois, por mais que queiramos, ou lutemos, diz ela: UTRUS JUMNANU JA. Cantou ela melancólica e sarcasticamente.

Mesmo que a sereia cobiçada, desejada, amada, cujas mãos que a tocam (a Dulce) divinamente tente afagar a dor que fustiga a minjer guiniensi. Foi por que que pus-me a pensar, e nesse ato de pensar como uma rã, reportei-me a Maurice MERLEAU-PONTY dizendo a D. Neves que existe

Uma relação de meu (dela e de todo o ser humano) corpo consigo mesmo que o transforma no vinculum do eu com as coisas. Quando a minha mão direita toca a esquerda, sinto-a como uma ‘coisa física’, mas no mesmo instante, se eu quiser, um acontecimento extraordinário se produz: eis que minha mão esquerda também se põe a sentir a mão direita. […] Há uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado pelo corpo, que o corpo é ‘coisa sentiente’, ‘sujeito-objeto’[1].

3.Os sabores dos amores

(OMI/MINJER, a gosto do freguês) RASTA TURPESA

(…)

DJUBI BU SERPENTI

PENSA NA AMAÑA.

É como se D. Neves estivesse sussurrando, bem baixinho, aqui nesta sala, as KOMBERSAS DI RIS DI LAKAKON.

No entanto, a rivalidade entre mulheres com vista à conquista do coração de um homem, e às vezes, vice e versa, deve ter lá algo de saudável. Mas se uma delas perder ou se as duas perderem, todas elas, as suas identidades, sejam elas objetivas, sejam elas subjetivas; este fato, de per si, será a razão de ser de seus destinos.

Por isso, a cantora guineense, para não dizer nada, mas apenas isto, em Ña Distino: nka misti dana ku bô.

Pois então: aos homens ‘A KAJABRANDADI’. Perdoem-me homens. Mas foi ela que cantou isso. Ou, talvez mesmo, nos tenha desencantado com esta palavra, provocando em nós uma espécie de admoestação, conselho. Afinal das contas,

ES KASABI SABI DI BIDA DI RUA

TA TISI FOMI NA MORANSA.

Mas, perdoe-me a inconsequência. Qual é mesmo o nome e o número desta RUA? Oxalá que a dança da cabra-cega não nos pegue. Ou é a dança do BODI SEGU? NPUNTA NAN…

  1. O amor sublime

Quando ouço a música Isabel, Isabel, a mulher combativa, guerreira, tenaz, persistente, teimosa até, até ao ponto de embrenhar-se na mata, ao lado dos homens, na luta, para que pudéssemos hoje afirmar com todas as letras do alfabeto, inventadas e desinventadas, que somos guineenses, não penso noutra coisa que não seja no exímio pensamento de Cabral:

A NOSSA LUTA É PARA TERMOS DIGNIDADE COMO QUALQUER OUTRO POVO DO MUNDO.

Ora, olhando ao redor, mas navegado nas ondas do momento presente da Guiné-Bissau, D. Neves, desculpe-me, a verdade é que ‘PERDEMOS A DIGNIDADE’.

DISPUS DI MI. Não tenho mais o que dizer, talvez faço, aqui e agora, a récita:

DISPUS DI MI

MANDA KONTAN

SI BU NA MURI

DI SODADI DI ÑA KASA

ANTIS DI UTRU BIN

DISPUS DI BÔ

(AMPUS) DISPUS DI MI.

Depois de a senhora dizer o ser, cantar e encantar a guineidade, preciso dizer mais algo? Não! Estou em crer que não.

DANU SON MAS LEGRIA

MA SI BU BIN PENSA TUJINU EL

DA NÔ MININUS: BU FIJUS!

Bissau, 23 de agosto de 2017 – Dia Nacional da Poesia e da Literatura

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

 

 

 

Por: Jorge Otinta, ensaísta e crítico literário guineense

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[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. O filósofo e sua sombra. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 247.

 

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