Crônica: A MANIA E A MITOMANIA

Às vezes pensando cá com os meus botões, sinto-me de tal forma atónito tal como sentira Sartre ao escrever um dos livros mais célebres da Filosofia universal, A Náusea. Não se trata da náusea propriamente dita sobre a situação sociopolítica que estamos a atravessar que tem, sobremaneira, impacto muito forte sobre a nossa economia que, para uns, é uma economia resiliente, enquanto que para outros, é uma economia deveras instável, porque desorganizada.

No entanto, gostaria de tecer alguns comentários sobre as marchas pela liberdade e pela democracia que aconteceram na semana passada entre os dias 16 e 17 do mês em curso.

Para dizer apenas que se tratou, a meu ver, de uma excelente iniciativa de cidadãos ativos, conscientes e com elevado espírito de patriotismo e civismo, ainda que militantes de partidos que constituem o espaço de concertação política.

Para dizer ainda que, esgotados todos os recursos de diálogo, na medida em que os Chefes da Máfia nacional fizeram ouvidos de moucos, desrespeitando às leis da República, ignorando os documentos assinados tanto em Bissau quanto em Conakry. Por pura incompetência. São todos eles, reles cidadãos que insistem a todo o custo manter o exercício são da práxis política – sendo este um ato essencial para a promoção do bem estar comum.

Pode parecer tarde. Mas não o é. Pois acreditávamos, inclusivamente eu, que a pessoa que elegemos para o mais alto cargo fosse junto com a sua malta tomarem consciência de terem empreendido o caminho errado. Afinal, enganamo-nos a todos.

Fato é que, no fundo, não é que recusaram a seguir os ditames da Constituição, muito menos cumprir com os dois Acordos rubricados em Bissau (10 de setembro de 2016) e em Conakry (14 de outubro de 2016). Não se trata de recusa, ou, quiçá, da defesa de interesses escusos. Nada disso. Mas sim, e isto é verdade, não sabem mesmo nada. São todos eles, ou analfabetos, ou analfabetos funcionais. Não entendem patavina nenhuma de política, e nem de administração pública. O que se dirá de servir o Estado e ao seu povo?

Tentou-se a marcha. E tudo parecia que ia falhar com o uso da violência típicos de Estados de exceção. Porém deu certo. Um oceano de pessoas a dizer basta de mentiras, basta de intrigas e futricas contra o povo, motivados pela lógica perversa de “dividir para reinar” desse governo de grupo.

Diz o vulgo: “bu pudi torkia kalsa, bu torkia camisa, ma maña, kila? Ninguin k ata torkial”. O homem revelou a sua personalidade.

De referir, outrossim, que em vez de, nós guineenses, passarmos o tempo a ver a vida passar, seria bom que tentássemos, e estamos tentando com isso, caminhar, marchar do que ficar em casa escondidos em protestos de nossos quartos de dormir ou em bancadas refugiar.

  1. Depois do gás lacrimogénio, a grande manifestação

É um dia de Kunfentu, mas não estávamos na praia. Muita gente passa, outros param, outros olham, mas não percebem nada. Uns temiam que a violência policial do dia anterior se repetisse. E com força. E talvez mesmo a mais bruta das forças, já que os “homens das máscaras pretas” desfilavam-se pelas artérias de Bissau.

Um horror. Espetáculo de mau gosto. Outros cidadãos pagos pelo regime clientelista das bancadas que alguém prometera em campanha das últimas eleições substituir por postos de emprego passam o dia todo bebendo, ou vinho ou warga, sem pegar sol ou cair na água. Outros, estavam na Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria, em busca de liberdade e de democracia, marchando em protesto pela sua clara usurpação.

Eram duas avenidas. Numa margem da Cidade, a Avenida da Liberdade, na esquerda, estava o Vale das Lágrimas. Dois córregos. Dois muros. Duas travessias.

Cada um podia escolher que caminho seguir.  

Apesar de tudo isso, os atuais detentores do poder dizem ser democratas. Pois seguem a lei da selva. “Sou, mando, posso”. Do lado dos que lutam efetivamente pela democracia e a afirmação do Estado de Direito, eles são apenas um bando de marginais, metidos a intelectuais de ínfima categoria.

Aos poucos, fito um doente que passa pelos manifestantes. Fito-o. E tal como dissera o único Nobel de Literatura em Língua Portuguesa, José Saramago, no livro Ensaio Sobre a Cegueira:

Se podes olhar, vê.

Se podes ver, repara.

Comecei então a criar a seguinte ideia: o Chefe dos delinquentes criou em torno de si um manto de fantasia, que o faz ser o primeiro a acreditar não ter problemas de governação. Tudo está nos conformes. Pois está a seguir escrupulosamente o que manada da Constituição do Grande Iran lhe diz.

Ora, para o espanto nacional, o povo saiu às ruas para dizer à gangue nacional que preferimos a felicidade das pedradas e de gases lacrimogénios importados sei lá donde do que continuarmos a assistir, impávidos e parvos, este show de horrores em que se está a exibir o filme da irresponsabilidade e da incompetência sem limites.

E, assim sendo, sei tal como você que participou da marcha que a realidade se imporá de alguma forma, mas sempre de maneira organizada. E civilizada. É a civilização a lutar contra a barbárie.

  1. Tática do avestruz

Decorridos mais de três anos de mandato, supostamente presidencial só uma palavra desfila exuberante e elegantemente na boca da cidadã e do cidadão guineense: crise política. Crise essa que paralisou todos os setores da atividade económica do país.

Depois da vitória eleitoral em maio do ano de 2017, o homem que prometera ser o melhor Chefe de Estado está empacado – como dizem os brasileiros – e continuará a avançar, sem prumo nem rumo, sem que a ele seja aplicada qualquer medida mais efetiva, como é crucial numa crise desta natureza, para que se comece a reverter o quadro tenebroso de maneira consistente a que ele e o seu grupo de malfeitores criaram, e quiçá, pintaram. Arte nefasta.

E a comunidade internacional? Nem pio, nem mio.

A sua ação política, justificável, pois ele tem desmentido na prática o que dissera nos palanques durante a campanha em todas as regiões do país — mas, pelo sim e pelo não, o tempo provou o que os adversários e pessoas que conheciam a sua índole previam. Não está preparado para dirigir o Estado nem tão pouco para consertar o desastre que ele mesmo patrocinou.

Senão vejamos:

  1. Destroçou a economia nacional;
  2. Estrangulou o país agravando a já má situação social, tornando-a péssima, e o povo a viver na miséria;
  3. Transformou-se num Chefe dirigista, e não num líder. Os gastos públicos foram elevados ao extremo, com viagens desnecessárias, pois Governo de país nenhum vai celebrar acordos de cooperação com um governo ilegítimo, inconstitucional, fruto de acordos secretos entre a máfia nacional e um grupo de delinquentes;
  4. Tenta silenciar vozes críticas porque não concorda, prefere criar mais tensões, e se descuidarmos, levará toda a riqueza para o exílio, caso venha a ser forçado a isto;
  5. Não ata nem desata. Pior que isso, nada faz para desfazer o imbróglio, de causas estruturais, que ele e seu grupo de delinquentes criaram. Começou a sobrepor-se a figura do empresário sobre a figura do político.

Dizem que a mitomania é um transtorno psicológico ou, até mesmo, uma patologia. Ora, em tempos que correm fica difícil distinguir a verdade da mentira relativamente à situação política nacional. Pois, há uma dupla de mentirosos compulsivos que mentem com tanta convicção querendo a todo o custo fazer-nos acreditar que é mentira a verdade de não ter existido um nome de consenso em Conakry. Só eles mesmos são capazes de crer na própria mentira.

Mas, como se sabe, quem faz da mentira sua principal qualidade, acaba um dia, mais cedo ou mais tarde, a ter necessidade de mentir. São tipos de pessoas que criam promessas utópicas para conseguir ludibriar, ou fazer com que todo o povo guineense acredite nesse suposto líder e seu grupelho.

É, assim, a clássica tática do avestruz. Pois, prefere enfiar a cabeça no projeto “Pés no Pot-Pot” do que seguir a evolução dos fatos como árbitro, e não como árbitro-jogador. Isso, na verdade, até piora a crise, porque pela degradação das nossas condições de vida a temperatura pode vir a subir. Ou seja, o cálice pode entornar.

Não preciso dizer mais nada, caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

 

 

 

Por: Jorge Otinta, Poeta, ensaísta e crítico literário guineense.

 

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