Crônica: A ILHA

– Viva a sagrada coroa imperial! – gritou Seu Santos.

– E que morra o chefão! – replicou o carcereiro. – Mas, por favor, quando chegarem ao comando, lá na cidade, digam-lhes para me substituírem daqui com o outro guarda, pois não aguento mais!

Havia uma indignação contra o poder central do Comandante. Todos o sabiam, embora ninguém o dissesse, às claras, temendo o óbvio: a repressão. Isto, quando pouco, ou até mesmo um silenciamento eterno.

– Como você veio parar aqui. O amigo do Chefe também está na lista dos traidores? – perguntou Armando Nankassa -, então o cerco está pegando fogo?

Seu Santos ficou calado, passou a mão na barba e expirou. Se alistara na tropa revolucionária, companheiro de trincheira do hoje seu Chefe máximo, outrora amigo de todas as batalhas e confidente. Guardara dele muitos segredos de suas estapafúrdias e tendência à mulherengo. Vícios de homem. Segredo de luta. Guardara tudo: valentia e covardia do homem, do mito. Sempre seu companheiro fiel. Muita coisa que ouviu dizer do seu amigo, alguma coisa pode ser verdade, mas outra duvida, porque ele não chega a ser tão mau assim. Acontece que aqui nesta ilha do desterro, ele está começando a mudar de opinião a respeito do amigo; contudo, pelo lado Chefe dele.

– Estamos em campo de batalha – disse-lhe o guarda, sombrio. – Vão nos liquidar a todos.

Santos e Nankassa ficaram calados. Pensativos. Santos levantou-se e se retirou da sala do guarda que, hoje, excecionalmente, lhes dirigiu alguma palavra, demonstrando algum tipo de humanidade para com eles. Convidou-os, logo de manhã, para um jantar. Desconfiados e reticentes, aceitaram. Imaginaram que o guarda fosse lhes “fingir amizade”, sacando deles informações que os pudesse comprometer ainda mais. Porém não foi o caso. Perceberam também que ao guarda uma tristeza lhe invadia a alma.

Na despedida, deram-lhe abraços de encorajamentos e cada um voltou a ocupar o seu lugar. Todos os três, em silêncio, que os dominava, voltaram aos seus respectivos lugares, sonhando com um dia de regresso a Bissau, nas músicas das manjuandadis, no calor da família.

Durante o sono, Seu Santos lançou-se numa fascinante viagem à luta armada, à batalha de Guiledje. Os rumos da batalha eram incertos. O inimigo português conhecido, com seu armamento pesado e sofisticado. Cruel como fora sua administração. No começo todos eles pensavam que os tugas venceriam. Embora fizessem uma sofisticada emboscada em volta do Quartel General deles e cercado determinadas posições estratégicas para eventual retirada deles, assim que percebessem das dificuldades que, eventualmente, eles os poderiam causar.

Os bombardeios começaram, tenazmente, os soldados guineenses foram expulsando, um a um, a cada tuga e cada sentimento de potência deles, até a vitória final. Dois artilheiros portugueses que ainda resistiam às ofensivas inimigas sucumbiram. Cumprira a orientação do Comandante: até o último colono, avante ao combate! Foi, pensando nisso, que Seu Santos Chorou. Uma lágrima, destas pequenas, deslizou de sua face. Lembrou-se do seu amigo e Chefe, outrora corajoso, mas que hoje, se deixou guiar por oportunistas e vigaristas. Coitado do Chefe. Coitado da Revolução.

Um sopro do vento veio do mar. Um farfalhar das folhas das árvores circundou a ilha. O combatente levantou-se de sua “cama”, abriu a janelinha da cela e o vento o inflou, e ele soltou um gemido. Voltou a deitar-se, estirando o corpo no chão, protegido por um gasto colchão, e uma esperança se apossou do seu corpo, ou melhor que tal corpo nem existia, e o manto estava vazio como o de um fantasma. É nisso que se transformaram muitos revolucionários, em fantasmas que respiram, rondando a pátria.

Acordado, Seu Carlos Ruy dos Santos, nome de batismo e de registro do nosso combatente, pediu uma folha e uma caneta ao guarda, pois queria redigir uma missiva à mãe:

Ilha das galinhas, 17 de Fevereiro de 1977.

Querida mãe, Maria do Céu,

À noite, toda a vez que durmo, no sonho me vem a tua imagem materna e amiga; mas quando acordo, dou-me por estar só, sem a tua companhia, sem teu carinho, teu amor, tua bênção.

Por aqui mãe, estou nos conformes. Vida de prisioneiro. As saudades são muitas, indescritíveis. Quando penso em você, em como você está a suportar este sofrimento a que te condenei, desde os tempos do mato até hoje, sem poder retribuir com um gesto, por mais pequeno que fosse de carinho, todo o amor e toda a dedicação, me dá um aperto no coração e as minhas vísceras parece querer saltar para fora. Perdão mãe por tanto sofrimento que te causei, tantas noites mal dormidas, com a esperança do meu regresso.

Hoje, mãe, vejo-me obrigado a reconhecer o que você e o papai me diziam quando decidi aderir à luta: “depois dos tugas forem embora, meu filho, alguns de vocês ocuparão seus lugares não para trabalha ou tirar o povo da miséria, mas para mantê-la, mesmo que para isso uma parte terá  que ser dizimada”.

Hoje, reconheço a tua profecia. Está se cumprindo.

O dia cá está lindo. Me animam estas férias na colónia dos irmãos. Saudades e dê as minhas mantenhas aos amigos e vizinhos. Para você,

Mil beijos,

Carlinhos

No coração não guardava nem rancor, apenas nostalgia, dúvidas e apreensões. Para ele, a revolução sofria algum sismo, mas não se afundaria. Mas uma certeza, mais do que outras poderia ter imaginado, é a verdade de que se tivesse podido prever a terrível sorte que o aguardava, talvez tivesse evitado a dor a que o seu corpo e a sua alma estejam passando.

Acordado, pediu ao guarda que o acompanhasse até ao porto, e também o pediu que deixasse o Armando Nancassa ir com eles, para enviar carta que acabara de escrever à mãe.

Os dois, o guarda e o amigo, riram-se do gesto, mas mesmo assim foram. No porto, agachou-se e num gesto terno, lançou no mar a carta para que as ondas do mar a levasse até a cidade de Bissau.

Olhou o céu, a floresta em sua volta e sorriu alegre.

E na ilha voavam as aves, batendo as suas asas multicolores, sem parar, e, em ritmo semelhante, a maré, batendo seus braços em todas as direções, como um tronco flutuando no meio do mar.

Não importava que a carta chegasse ao destino, para não ser acusado de conspiração contra a pátria, mas que fosse, através das ondas, levar o recado de sua existência à sua mãe, pois sabe que ela, como outras mães, dos condenados da pátria, vai, todas as tardes, ao Pindjiguity, dar um recado às ondas e chorar as dores da saudade do filho no desterro.

Pois é no balanço das ondas do mar é que está o imenso amor que embala os sonhos que ficaram aquém da revolução.

E esta democracia palhaça?

Os subversivos no topo da pirâmide exprimindo a desfaçatez de tamanho cinismo. Eia, que o bom Deus nos acuda!

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

 

 

 

Por: Jorge Otinta, poeta ensaísta e crítico literário guineense

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