Crônica: UM DECRETO A PEDIDO DA (PESSOA) INTERESSADA

Um amigo contou-me uma história deveras hilariante. Conta ele que num destes passeios pelos jardins da vida terá passado por maus bocados em companhia de um outro amigo seu. Este, segundo me testemunhou, viu que a estrada que tinham empreendido era muito perigosa, mas para não assustar o amigo não o avisou dos possíveis perigos que terão de enfrentar pelo caminho.

Assim foram caminhando, caminhando, caminhando até que, ao de longe, avistam um vulto qualquer. Uma figura estranha, medonha, de proporções incomensuráveis, altamente perigosa – percebia-se de longe -, vinha ao encontro dos dois amigos.

Tremiam porém ninguém ousava mugir ou fazer qualquer gesto – por mínimo que fosse – para não despertar a ira do monstro.

Reinava um silencia de Deus.

A noite que aprecia de brisa suave, calma e que batia carinhosamente nas suas faces até há pouco sorridentes esvaneceu-se em brisa intempestiva, agressiva.

Um deles (o que conhecia o caminho) fugiu sem ter avisado ao outro. Este, por sua vez, sem saber que rumo tomar caiu no chão, fingindo-se de morto.

Debruçado sobre este presumível cadáver o temível bicho cheirou-o, tentou removê-lo do caminho, mas este não dera sinal nenhum de vida.

Tentou, por outro lado, dar-lhe “uns pisos”, pequenos choques de agressão, e nada. Este mantinha-se morto. E parecia morto mesmo.

O monstro vendo que todas as suas tentativas estavam a resultar-se em vão, abandonou-o no local. Desprezando, assim, seu corpo inerte no chão.

Lá, no seu esconderijo, após minutos de longa espera, o amigo fugitivo saiu, e aproximando-se do outro, perguntou-lhe como terá conseguido aquela farsa a ponto de safar-se. Este, olhando-o olhos nos olhos, disse-lhe:

– Hoje aprendi o quanto o cinismo e a falsidade são capazes de corroer o tão nobre sentimento da amizade.

O fugitivo arregalou os olhos, e vendo que o defunto vivo não estava para meias voltas, resignou-se; e com isso tomaram rumos diferentes por este mundo afora.

  1. O colo incauto

Pensara o segundo amigo que o primeiro era-lhe fiel escudeiro, em quem confessara muitos dos seus atos falhos – o que chamam por aí de pecado -, não sabia ele que amigo que lhe parecia prestativo era, na verdade, pessoa que tinham infiltrado na sua vida para fustigá-la.

Trata-se de um amigo que podemos considerar o suave veneno do escorpião. Tal como dissera noutra crónica relativamente à história do Sapo e do Escorpião ficou provado o quanto a ingratidão persiste em minar a nossa sociedade.

O humor da dor que fustiga a alma humana.

Alma que se preze sorri sempre para a vida.

Bom é fazer amizades, o ideal é selecionar criteriosamente os amigos com os quais contar.

  1. Ouvir para não escutar

Deus terá dito a Moisés, no Monte Sinai, que a atitude de um homem sábio consiste em saber escutar. Escutar pressupõe ouvir, apreciar, analisar criteriosa e ponderadamente antes de pronunciar-se. E, por extensão, decidir sobre qualquer que seja a matéria e/ou assunto em debate.

Terão os dois amigos tentado reatar-se. Contudo, o caminho para o fazer parecia, a cada dia que passava, mais íngreme, pois o que se sentiu traído, abandonado, não terá condições de perdoar; pois diz-lhe que a lealdade entre dois amigos é que sustenta a amizade sincera.

O traidor chamou pessoas só por figurinhas para reconstruir os abraços partidos, as flores partidas que já não se podem unir por as pétalas estiverem já, de si, mortas, de tantas pisadas. Algumas nornoridas.

A fala do tempo fundamenta a voz da vida.

A cada conselho ouvia com atenção, mas a ninguém escutava. E não era para menos. Depois de uma traição daqueles em que, inadvertidamente, perdia a vida. Ou seja, já estava a ver o rosto de Deus. Como diz meu mestre só os mortos é que têm o privilégio de ver o rosto sempre sereno, calmo e esplendidamente lindo e seminal Deus.

Deve, todavia, ser interessante ver a Deus olhos nos olhos, segredar-lhe coisas que se aprendeu cá na terra, e também sobre os presumíveis infortúnios por que se passou também por este planeta de horrores, mas também cheio de bons odores.

Quiçá, por estas e outras, é que nosso amigo baixou sobre o outro o Decreto de exoneração da amizade subtraída.

  1. Fato cria ato

Quando se dá um passo na direção certa, com o passo seguinte chega-se ao destino.

Fatos e factóides andam a assolar-nos, entretanto, por descuido ou por descaso rendemo-nos a eles, e passamos nosso quotidiano a virarmos de um lado para o outro sem saber, ao certo, o nosso verdadeiro norte.

Pois, aprendi, em largos anos de vida, aqui no país e em terras estrangeiras, que quem dá um passo em falso é capaz de perder o also.

Que a ninguém lhe seja permitido amanhã amaldiçoar a Deus por tê-lo renegado.

  1. Som sem tom

Todo o mundo sabe que sou um amante inveterado, pois as minhas vértebras ainda o permitem.

Ainda assim não espero que ninguém saia em minha defesa por mais razões que possam ele (a) s ter, sem que entretanto procurassem saber da minha real culpa. E, eventualmente, da razão que me move a fazer as coisas que faço (por mais fortes ou fracas que sejam).

Nem por isso deixo de ter motivos para sustentar a ilibação que pretendo de mim, pois a minha pena, quero-a que me seja leve.

Tendo baixo o Decreto da inimizade, restou ao nosso amigo, tentar também ele vir de cinismo exacerbado.

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

 

Por: Jorge Otinta

Ensaísta, escritor e crítico literário guineense

 

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