Opinião: A PERPLEXIDADE DA SOCIEDADE CIVIL GUINEENSE

A sociedade civil representa o cordão umbilical entre a população e a classe política, por conectar os interesses populares face às medidas políticas não adequadas. A elas refere-se o conjunto das organizações voluntárias que servem como mecanismos de articulação de uma sociedade, em oposição às políticas públicas das estruturas de estado, que não atingem os interesses gerais.

Na Guiné-Bissau, essas organizações de massa estão a crescer-se e as suas intervenções são cada vez mais sentidas. Os objetivos prosseguidos visam a transformação de fenômenos sociais de interesse coletivo. Porém, enfrentam grandes obstáculos em alcançar os seus principais objetivos. Porquê?  

Essa pergunta suscitaria pelo menos três níveis de análises, para poder se aproximar de uma explicação mais objetiva possível. Esses níveis de análises podem incluir desde as razões políticas, razões estratégicas de funcionamento das mesmas, até em função da própria organização interna dessas massas.

No que concerne às razões políticas, a sociedade civil enfrenta grandes obstáculos, porque toda vida social do país está politizada. Nesta lógica, nada se consegue distanciar-se da conexão política. A sociedade civil não tem conseguido apresentar uma ideia concisa, sem se aproximar das motivações políticas. Não é necessariamente imperativo que a sociedade civil se afaste da atividade política, porque a sua missão é acompanhar a execução das políticas públicas e denunciar todo comportamento que ponha em causa o bem-estar social da população.

No entanto, os principais membros da sociedade civil, devem assumir uma postura de imparcialidade em relação às disputas de poder político, para que as suas lutas pudessem se concretizar. A luta política para a distribuição do poder ao nível interno, não pode ser conotado com a luta pela defesa dos reais interesses da população. Porque apesar dos políticos anunciarem frequentemente os projetos de desenvolvimento, na prática vê-se grandes obstáculos em materializar esses projetos mesmo estando no poder, por vários motivos que, por agora, não constituem o objeto central desta análise.  

Então, a sociedade civil deve demarcar a sua luta das inspirações políticas. No entanto, alguns discursos dos responsáveis das organizações de sociedade civil, não têm conseguido tal feito. Por exemplo, numa das reações em relação à marcha organizada pela Frente Popular, no dia 18 de maio de 2024, que culminou com a detenção de alguns cidadãos, o responsável da Liga Guineense, Sr. Abubacar Turé, preferiu um discurso que arruinou toda lógica sã da luta que estava avante. Numa das suas declarações, convidou “aos líderes políticos que viviam na diáspora…para deixarem as suas zonas de conforto, para virem lutar pela afirmação dos valores democráticos.” Realmente, a defesa dos valores democráticos é um dever cívico num regime democrático e todos os cidadãos devem participar nesta luta pela afirmação desses valores.

No entanto, a sociedade civil não pode coadjuvar a sua luta com a de políticos opositores, baseando no princípio de alternância do poder e porque do ponto de vista teleológico, as finalidades são adversas.

Geralmente, a maioria das intervenções dos responsáveis de sociedade civil guineense, concentra-se mais em relação às figuras políticas, não em relação às políticas públicas que afetam negativamente a vida das populações. Por exemplo, nos momentos finais de pandemia covid-19, no governo liderado pelo Eng. Nuno Gomes Nabiam, foram aumentados 5 novos impostos. Medidas essas que tiveram impacto direto sobre o rendimento dos cidadãos. Porém, não houve nenhuma voz organizada e bem determinada para manifestar contra essas medidas.

Essas medidas foram tomadas num período em que o Fundo Monetário Internacional estava a pressionar as finanças públicas para ajustar as políticas financeiras, ao mesmo tempo a dívida pública guineense ultrapassa o teto da União Económica e Monetária do Oeste Africano. Igualmente, a medida foi tomada num período em que, de acordo com os dados de Mo Ibrahim, o índice de boa governação estava abaixo dos lineares. A isso, sem mencionar os subsídios milionários e enriquecimento ilícito dos governantes.  

Ou seja, a sociedade civil guineense escapa quase sempre no momento certo, para reivindicar os assuntos de maior importância social. Talvez por isso, não se tem tido a capacidade mobilizadora e os seus discursos se tornam frequentemente repetitivos. Por outro lado, os meios e os lugares de reivindicação devem ser melhor enquadrados no âmbito da estratégia de atuação da sociedade civil.

No que se refere ao segundo nível de análise, que está ligado à questão da estratégia, isso constitui um pilar fundamental para que as ações de sociedade civil possam valer na prática. Verifica-se frequentemente que a sociedade civil apresenta uma perplexidade em relação aos seus meios e lugares adequados para a sua reivindicação. A incapacidade mobilizadora da sociedade civil, está ligada às falhas na definição de timing de comunicação, meios para o efeito e lugar adequado para as suas reivindicações. 

Com base no acompanhamento da evolução social, a sociedade civil devia saber situar melhor o momento preciso em que pode ser ouvido e reconhecida a sua intervenção. A comunicação da sociedade civil não pode depender da pressão, nem dos políticos opositores que avançam com suas intervenções de caráter meramente político. Porque, assim como foi dito, a preocupação dos políticos está ligada mais com a mudança na estrutura de esfera política. Ao passo que a sociedade civil tem que ser mais ágil, denunciando todas as práticas que vão contra o real interesse da população, não tendo nenhuma preferência em relação a quem esteja na estrutura de poder.

O outro aspeto da estratégia tem a ver com o meio e o lugar adequado para as ações da sociedade civil. Recentemente, quando as autoridades proibiram manifestações públicas “de pressão” restringindo assim os direitos consagrados na constituição da república, a sociedade civil teve grandes dificuldades em encontrar outras alternativas. A solução foi então, resistir a proibição e realizar a manifestação pública.

Porém, a sociedade civil poderia também adotar outros meios que podiam ser de bloqueio à via pública durante visitas de estado, ou realização das palestras convidando meios de comunicação e representantes de organismos internacionais, líderes religiosos e até líderes tradicionais, para denunciar as más práticas de governação.

A sociedade civil não aposta muito nesses meios, prefere quase sempre a mobilização da massa, para as manifestações públicas. Contudo, não é mobilização que cria efeito transformador na sociedade (exceto em casos de revolução), mas sim, a conscientização. Caso a sociedade civil adotasse outros meios de conscientização, como realização de grandes debates para denunciar as atrocidades políticas, programas radiofónicos, publicação dos dados estatísticos de desemprego, inflação, insegurança alimentar e outros, o resultado seria totalmente diferente pela positiva, com tempo.

As manifestações públicas são facilmente reprimidas por falta de definição eficaz de coordenadas ao nível nacional. Nunca poderão meia dúzia de jovens conseguir enfrentar as forças de segurança, mas também as forças de segurança nunca poderão reprimir uma multidão consciente e determinada.  As dificuldades em mobilizar a grande multidão, tem haver com a falta de conscientização das massas. Porque a mobilização em si, não pode criar um elã transformador.

É necessário que haja um processo contínuo de conscientização da população, em todas as camadas. Por exemplo, fala-se tanto das diferenças entre as conquistas populares noutros países vizinhos e o fracasso popular na Guiné-Bissau. A diferença fundamental é exatamente essa ausência de conscientização. Na Guiné-Bissau, raramente o debate se desvia das atividades políticas. Tudo ocorre à volta da política ativa, nada se distingue dela.

Dificilmente a inflação é merecedora de grandes debates. O desemprego juvenil, uma camada que constitui acima de 64% da população. Da agricultura que é base da economia, da renda que é fundamental para as famílias que são um agente econômico mais importante. A elevada subida da dívida pública, da quase ausência de setor privado.

Na ausência desses debates, os políticos aproveitam-se para estar na pauta dos debates e no centro das atenções. Por isso, somos induzidos a ter crença, “num futuro possível.”

A sociedade civil precisa definir bem as suas estratégias e meios de atuação. Considerar as preocupações de todas as camadas sociais ao nível nacional. A preocupação da sociedade civil não se pode limitar apenas nos centros urbanos. Deve apreciar todas as atividades populares e atuar em igual medida.

É evidente que, apesar das organizações da sociedade civil terem estruturas ao nível regional e setorial, as suas manifestações e reivindicações nunca foram harmonizadas de tal forma que possam valer a pena e mexer com a estrutura do poder político. Era preciso que houvesse coordenadas e capacidade de mobilização, de modo a fazer face às injustiças sociais que se tem registado no país.

Sabe-se que há uma espécie de urbanismo excludente no seio social guineense, implantada de facto. Refere-se aos acessos que se concentram mais no centro urbano, excluindo a grande maioria da sociedade guineense, que vive nas regiões ou nas periferias. Disso, ninguém fala.

O terceiro e o último nível de análise, é em relação a organização no seio da sociedade civil. Um dos grandes problemas da sociedade guineense é certamente a ausência de capacidade organizacional, por isso, muitos projetos tendem a enfraquecer. A sociedade civil não é isenta nesse fenômeno. Assim como foi definido, a sociedade civil é o conjunto das organizações voluntárias de defesa aos valores e interesse coletivo.

 No entanto, sabe-se, que a maneira como a sociedade se organiza é que dá as condições objetivas para que os fenômenos possam ser analiticamente tratados e merecer um posterior tratamento político. Infelizmente, é difícil identificar organizações de sociedade civil comprometidas com os valores da sua criação e do principal objetivo da sua existência. A proliferação das organizações da sociedade civil guineense, é a base de inconsistência e razão de fracasso sistemático.

A classe política conseguiu penetrar no seio da sociedade civil e criou nela divergências, e consequentemente está a atingir o desejo de enfraquecer todas as frentes e todas as estratégias de ação por essa definida. As divergências existentes no seio da própria sociedade civil não podem ajudar na concretização dos objetivos. Essa tendência tende a aumentar se olharmos pela conjuntura sociopolítica do país. Cada vez mais, a noção do coletivo está a desabar no seio da sociedade guineense, e a prioridade para a afirmação individual cada vez mais nítida.

Com raras exceções, muitos líderes da sociedade civil fazem das organizações de massa os seus meios para alcançar os fins. Essa ambiguidade em termos de convicção, está a afundar cada vez mais essas organizações. Atualmente, é raro distinguir os líderes com agendas obscuras, dos que sejam realmente convictos na luta e esperançosos na afirmação dos valores que defendem.

Em suma, a sociedade civil precisa adotar os mecanismos de conscientização da população e procurar distanciar-se ao máximo das influências políticas. As lutas da sociedade civil não podem se misturar com as de políticos. As manifestações de caráter político são respeitáveis, mas não devem condicionar a ação da sociedade civil. É surpreendente quando se estabelece uma comparação entre a capacidade mobilizadora da sociedade civil e a de classe política, e repara que, a sociedade civil não consegue mobilizar um terço do número que os políticos conseguem.

Entre outros fatores, a ausência de uma consciência clara da situação sociopolítica, acaba por condicionar as pessoas a aceitar subornos em detrimento a uma luta justa que poderia garantir uma vida mais digna para toda a população.

Por: Alberto Carfa Jaura

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