Opinião: GUINÉ-BISSAU – CEDEAO: falhou a normalização?   

1. Problema

Como é sabido, esta longa crise política resultou de uma fratura partidária – fratura essa que era preciso consertar tendo em vista normalizar o funcionamento do parlamento guineense, e, consequentemente, viabilizar na ordem parlamentar um governo de inclusão. Apenas isto. Concentrar-se no que é essencial, não se dispersar – foi isso que faltou um bocado.

2. Ordem e substância

A ordem dos fatores nem é arbitrária, nem é completamente rígida. Mas parece que seria bem mais proveitoso começar-se não pela “guerra de primeiro-ministro”, mas pelo último ponto “cronológico” do Acordo (o ponto 10), cujo conteúdo faz dele, logicamente, o primeiro ponto a ser atendido. Pelo “princípio de uma reintegração efetiva dos 15 deputados dissidentes no seio do PAIGC, sem condições mas tendo em consideração os textos em vigor no seio do PAIGC.”

Ponto esse que levantaria, logo, a questão de como gerir o dualismo das duas premissas nele inscritas: reintegração “sem condições” e reintegração condicionada “pelos textos partidários em vigor”?

Não se pode dizer que esse ponto 10., redigido originariamente em francês, foi um bom exemplo de clareza cartesiana. Ainda assim, todos o subscreveram despreocupadamente, como se fosse claro, autoevidente, indubitável. Menos de um dia após a assinatura do Acordo – como era de esperar -, instalou-se um grande imbróglio, até hoje!

E agora? Como lidar com essa “incondicionalidade condicionada”? Prosseguir uma gestão estratégica para esmagar “os 15” (subordinando a recomendação do Acordo à luta interna de poder no seio do PAIGC), ou – ao contrário – dinamizar uma estratégia para recuperar “os 15” em nome da restauração da unidade do PAIGC? Que rumo seguir? É este o “nó” que tinha, primeiro, de ser desatado, e que ainda não aconteceu.

3. Falta de incentivo

Surpreendeu-me o facto de não constar do Acordo um único incentivo para que se cumprisse o crucial ponto 10. Ora, sem nenhum incentivo para o seu cumprimento, o Acordo ficou sem tração! A execução do Acordo parou rigorosamente no “ponto morto” apesar do muito ruído que se faz à sua volta.

Vou dar um exemplo. Suponhamos que vinha inserido no articulado do Acordo um texto que exprimisse o seguinte conteúdo: “ ’os 15’…, salvaguardados todos os seus direitos adquiridos em Congresso (de Cacheu), serão reintegrados até data tal…., sob pena de o PAIGC vir a integrar o governo de inclusão não com 57% mas apenas com 42% dos membros desse Executivo”. Que grande diferença é que uma tal cláusula não teria representado? É claro que, com esse incentivo, o Acordo teria outra força executória, seria muito mais constringente para os destinatários visados, teria tração. (Note-se que, por sua própria natureza, um incentivo serve para isso mesmo: para premiar ou para penalizar).

Uma vez resolvido, primeiro, o ponto 10 do Acordo, o PAIGC e o PRS avançariam, então, no sentido de “encontrar” um primeiro-ministro de consenso (ou um primeiro-ministro mais um vice-primeiro-ministro) com vista a instalar o “motor de arranque” de um governo inclusivo. Nada disto aconteceu!

Ora, ter começado pela “guerra de primeiro-ministro” foi a mais arriscada de todas as outras maneiras imagináveis de começar a implementação do Acordo de Conacri. De facto, a não reintegração de “os 15” no PAIGC induziu, imediatamente, uma dinâmica maioritária em vez de se desenvolver uma dinâmica de consenso, facto que teve o duplo efeito de derrapar a implementação do Acordo e de fazer escalar a tensão política no país. Como é que não viram isso? Que, pelo Acordo de Conacri – se bem entendido – um governo de inclusão pressupõe um partido (PAIGC) de inclusão. “Statu quo ante e Inclusão calibrada”, camaradas, por que se esqueceram disso?

4. A porta do diabo

O diabo anda sempre pelos detalhes, às vezes nas entrelinhas, uma sabedoria antiga que os justos sintetizaram no conhecido aforismo: “todo o cuidado é pouco”. E, infelizmente, faltaram alguns cuidados na conceção do Acordo de Conacri.

Um primeiro-ministro “consensual” (leia-se: de consenso interpartidário) e que também merecesse a “confiança” do Presidente da Republica, teria sido, desejavelmente, a melhor das soluções: seria o “produto” de um consenso alargado, um consenso interpartidário reforçado pela confiança presidencial. É a idealização retida no ponto 1 do Acordo, mas que acabou por se traduzir no seu inverso: no mais controvertido de todos os outros pontos do Acordo.

Por quê? Porque foi maximalista. Por ter estabelecido uma “condição suficiente” muito difícil de ser satisfeita no atual contexto guineense, que é um contexto “quase de estado de natureza”, de “guerra de todos contra todos”, sem um “príncipe” que, pela sua autoridade, fosse capaz de conciliar a classe política e as instituições, a sociedade civil e o Estado. Curiosamente, esse maximalismo que se queria normalizador transformou-se, logo a seguir, num minimalismo rígido, inflexível, potencialmente disruptivo.

Repare-se: o ponto 1., não pede o consenso interpartidário ou – alternativamente – a confiança presidencial. Pede as duas coisas ao mesmo tempo: consenso e confiança; algo que é mais do que um consenso interpartidário e também que é mais do que a confiança presidencial. Na crença de que os “protagonistas bissao-guineenses” saberiam pôr de lado os seus interesses particulares e ódios de estimação e, assim, entenderem-se em nome de um valor que são os superiores interesses do seu próprio Estado! Uma boa questão: quanto pesa esse valor “os superiores interesses do Estado”: a estabilidade, a governabilidade, a segurança…- na balança político-partidária, no planeamento político guineense?

Ficou em aberto, pois, a questão-chave: e na falta de um primeiro-ministro partidariamente consensual e de confiança presidencial, que fazer?

5. Veículo interpartidário e “institucionalidade”

É certo que o consenso interpartidário contém o potencial de antecipar o consenso parlamentar (condição necessária para validar o Executivo de Inclusão), uma vez que o primeiro (o consenso interpartidário) é premissa do segundo (o consenso parlamentar). Mas uma tal implicação já não resultaria da aplicação do segundo dispositivo – “confiança presidencial”- uma vez que esta não é projetável no parlamento sem o veículo de um consenso interpartidário prévio. Pela simples razão de que o nexo (constitutivo) que liga os partidos com assento parlamentar ao próprio parlamento é completamente distinto do laço constitucional que articula dois órgãos de soberania distintos, autónomos, como são o Presidente da República e a Assembleia Nacional Popular (ANP).

Ora, na ausência desse veículo interpartidário (institucional), o “caminho” institucional do governo para a ANP tornou-se muito mais complicado de se fazer. A saída institucional da crise tornou-se, assim, difícil de se operacionalizar uma vez que ela só pode ser dinamizada por um operador interpartidário, não por desejo presidencial, por mais bem-intencionado e respeitável que fosse um tal desejo.

6. A cláusula que faltou

Quando li o Acordo de Conacri e ter ouvido, em Bissau, os primeiros discursos pós-Conacri, disse logo: isto vai correr mal. Outra vez, por falta de tração.

Pareceu-me, desde o início, ter faltado no Acordo uma cláusula de articulação ou de segurança, por exemplo, com o seguinte teor: “caso falhasse a iniciativa interpartidária (isto é, o consenso interpartidário), então – para a compensar – entraria em ação um “mecanismo extraordinário” (da CEDEAO, claro) de execução do Acordo de Conacri.” Para normalizar a Guiné-Bissau.  

Bem entendido, este conceito não serviria para substituir “consenso interpartidário” por “confiança presidencial” uma vez que (“consenso interpartidário” e “confiança presidencial”) são duas fontes de legitimação não intermutáveis. O facto curioso é que as partes litigantes (uma contra a outra, numa luta feroz) aceitaram operar com base numa premissa falsa, que supõe precisamente a intermutabilidade das duas referidas instâncias legitimadoras. Por isso, os “litigantes” discutiram nomes – imagine-se: apenas nomes! – durante seis meses. Não discutiram princípios!        

7. O que foi perdido

Pelo menos três razões pareceram-me plausíveis, naquela altura, para dinamizar um processo interpartidário construtivo devidamente articulado:

primeira, porque não podendo nenhum dos grandes partidos, unilateralmente, criar o consenso sustentador do governo de inclusão, exigia-se, por conseguinte, que se unissem neste empreendimento, assumindo a responsabilidade de prevenir o impasse, não permitir o deslizamento para um “beco sem saída”;

segunda, porque os dois partidos deveriam, por ética política, evitar que o eixo governamental fosse deslocado da órbita parlamentar para a esfera da Presidência da República. O que a acontecer teria um duplo efeito negativo a saber: de poder distorcer a doutrina constitucional ainda em vigor, e, por conseguinte, expor o Presidente da República a inevitáveis e desgastantes críticas de querer estender suas competências para fora das balizas constitucionais, mesmo que não fosse – e poderia até não ter sido – essa a sua intenção;

terceira, porque em caso de fracasso negocial interpartidário, então ambos os partidos perderiam imediatamente a prerrogativa de reivindicar para si a “pasta” de primeiro-ministro ou de vice-primeiro-ministro. (A este propósito volto a lembrar que um incentivo serve ou para premiar ou para penalizar).

Caso os protagonistas tivessem, por vicissitudes várias, chegado a este último ponto, e sendo corresponsáveis pelo fracasso negocial – fosse por inabilidade política (involuntariamente) fosse por cálculo estratégico (deliberadamente) -, seria então imediatamente ativado o “mecanismo extraordinário” de implementação do Acordo de Conacri. Bem entendido: ainda antes de se ameaçar com sanções.

Enfim, essa “cláusula de segurança” (infelizmente, ausente) teria criado mais um incentivo, o segundo, destinado a incitar os dois partidos relevantes a procurarem, com lealdade republicana, construir um entendimento entre eles. Que certamente daria os seus frutos, a menos que quisessem demitir-se de, conjuntamente, dar ao seu país um Executivo funcional e credível – o que não se presume.

Mas se, por desventura nossa, fosse esse o caso (de irresponsável demissionismo dos protagonistas perante a crise), então lá estaria disponível, pronto para ser ativado o “mecanismo extraordinário” com vista a articular o desbloqueamento do processo político. Deste modo, seria possível “sair do beco” ou, melhor do que isso, evitar cair num “beco sem saída”, proteger o Estado de fraturas políticas dilacerantes para a sociedade guineense. Era esse o “modelo” por mim preferido, mas, como seu viu, as coisas tomariam outro rumo.

8. Que devemos fazer?

Pelo que aparece legível no texto do Acordo (e não fui eu que o escrevi), um texto que todos os protagonistas livremente subscreveram e, presumo, que o assinaram de boa-fé, é identificável nele pelo menos quatro “figuras” que não se considera:

– não defende eleições antecipadas;

– não defende um governo da “antiga maioria”;

– não aconselha um governo da “nova maioria”;

– não perspetiva um governo de “unidade nacional.

Quer isto dizer que, para uma saída institucional da crise, o Acordo de Conacri não oferece nenhuma alternativa positiva a um governo inclusivo de consenso. Daí a ameaça de sanções: ou governo inclusivo ou sanções.

Claro que é sempre possível uma racionalização diversa para a saída da crise, mas por ora, não interessa conjeturar outras soluções, nem propor um Acordo de Conacri 2. Por enquanto, é apenas o Acordo de Conacri de 14 de outubro de 2016 que nos está a ocupar.

É verdade, que a recentemente criada pela CEDEAO expetativa de sanções é mais um incentivo que se concebeu, tendo em vista desbloquear um processo político estagnado. Mas atenção: por mais justificado que viesse a ser um regime de sanções, ele, como já se lembrou, nunca será (por si só) uma alternativa à crise guineense de governabilidade. Escusado é dizer que a CEDEAO – com os seus estadistas e diplomatas experientes – saberá o que fazer, o que, da minha parte, não é, com certeza, uma profissão de fé, apenas uma expetativa legítima.

Por tudo o que, neste texto, foi dito, ainda se mantém de pé a pergunta crucial: que devemos fazer para normalizar a Guiné-Bissau? Manter-se numa atitude resignada (que, por sinal, não é uma atitude dignificante) de ficar à esperar de sanções externas da CEDEAO, de aguardar por uma “milagrosa” reunião da CEDEAO? Que fazer diante da falência política de um regime que em 23 anos de democracia já deu ao nosso país 18 governos? Que fazer?

Vamos instalar “já” uma “Mesa de Diálogo Nacional”, por que não? Avancemos “já” na linha traçada pelo “ponto 6., do Acordo de Conacri” – uma boa e promissora retoma da política no bom sentido.

 

 

Por: Dr. Fernando Delfim da Silva
Bissau, 24 de maio de 2017

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3 thoughts on “Opinião: GUINÉ-BISSAU – CEDEAO: falhou a normalização?   

  1. Mais um artigo cosmético que O DEMOCRATA publicou só por questão da ética profissional, porque este senhor mais uma vez não explicou nada, até parece uma aula do Peter Singer.

  2. Não existe coisa melhor no meio do povo que não seja a paz. Caso o povo guinense achar mesa de diálogo nacional trará soluções retardadas melhor, festa gorma ameniza sofrimento do povo e ganha a África.

  3. Caro irmãos para mim eu acho que a única maneira de acabar com esta situação é a convocação das eleições gerais.
    Asim ganhe quem ganhar e nada de governo de unidade nacional.
    Já vimos vários governos de unidade nacional,e nada resultou.

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