Jurista e ativista dos direitos humanos: “CRIMES DE SANGUE COMETIDOS NA GUINÉ-BISSAU PODEM SER JULGADOS POR UM TRIBUNAL ESPECIAL”

O Jurista e ativista dos direitos humanos, Bubacar Turé, afirmou que os crimes de sangue e demais outros contra a humanidade cometidos na Guiné-Bissau, em diferentes períodos, podem ser julgados por um tribunal especial, como forma de estancar a impunidade institucionalizada no país, justificando que as “instituições judiciais da Guiné-Bissau são moribundas, corruptas e inócuas”.

Turé, que também é o presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), fez esta advertência durante uma entrevista ao Jornal O Democrata para analisar a iniciativa da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) em criar um tribunal especial para julgar os crimes de assassinatos e acima de tudo da violação dos direitos humanos cometidos na Gâmbia pelo regime do então chefe de Estado, Yahya Jammeh, bem como a possibilidade da iniciativa do género na Guiné-Bissau, com o intuito de julgar os casos de assassinatos de militares, figuras políticas e da violação dos direitos humanos ocorridos no país.

O ativista afirmou que para a criação de um tribunal especial na Guiné-Bissau é preciso que haja, em primeiro lugar, a vontade política interna, ou seja, seriedade e consenso alargado de que o círculo vicioso de assassinatos, torturas, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, devem ser investigados e julgados.  

O Democrata (OD): A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) criou um tribunal especial para julgar o antigo Presidente da Gâmbia. Qual é a importância da criação do tribunal especial da CEDEAO para julgar os crimes de assassinatos e acima de tudo da violação dos direitos humanos cometidos pelo regime do então chefe de Estado gambiano, Yahya Jammeh?

Bubacar Turé (BT): A criação de tribunais criminais especiais tem um histórico de longa data. Desde logo, a história ensina-nos que o Tribunal de Nuremberga foi criado para julgar os crimes de guerra cometidos na Segunda Guerra Mundial. A partir desta altura, a justiça penal internacional experimentou vários casos de jurisdições especiais em vários cantos do mundo. A título de exemplo, o genocídio de Ruanda foi julgado por um tribunal penal especial, o antigo Presidente do Tchad, o ditador Hissène Habré, foi julgado no Senegal, por um Tribunal Especial criado pela União Africana.

Portanto, estes tribunais são cruciais e extremamente importantes para combater a impunidade, sobretudo nos contextos em que o sistema judiciário nacional é institucionalmente frágil e incapaz de cumprir cabalmente a sua missão, como é a situação da esmagadora maioria dos casos.

Ao ordenar a criação de um Tribunal Especial para julgar os crimes cometidos por Yahya Jammeh, a CEDEAO está a cumprir os termos do seu próprio tratado fundador e o Protocolo para a Democracia e Boa Governação. Aliás, para mim, esta medida da CEDEAO representa uma vitória dos direitos humanos contra a tirania e aristocracia que caracterizaram o regime do ex-ditador da Gâmbia.

OD: De que maneira o tribunal pode impactar a percepção da população sobre a justiça, a responsabilidade pelos direitos humanos e particularmente acreditar na CEDEAO, uma organização em desgaste político e considerado de sindicato de chefes de Estado?

BT: Creio que devemos distinguir duas coisas importantes: A primeira é o consenso generalizado em Gâmbia e em todos os países comprometidos com a dignidade da pessoa humana, de que os crimes abomináveis cometidos pelo regime de Jammeh não podem ficar impunes, e, para o efeito, face às vulnerabilidades das instituições judiciárias daquele país, a comunidade internacional com especial destaque a CEDEAO deve assumir as suas responsabilidades.

Estamos a falar de um regime que, de acordo com o relatório de dois anos de audições públicas da Comissão da Verdade e Reconciliação (TRRC) na sigla Inglesa, matou entre 240 a 250 pessoas, entre as quais jornalistas, ativistas dos direitos humanos, opositores, militares, durante os 22 anos do seu consulado sangrento.

Este número inclui a morte de cerca de 59 migrantes da África Ocidental em 2005, entre os quais 44 ganeses. Ou seja, as vítimas deste monstro não foram apenas os gambianos, mas também cidadãos de outros países. Permita-me render uma justa homenagem ao proeminente jornalista Gambiano, Deyda Hydara, que foi barbaramente assassinado pelo esquadrão de morte de Jammeh designada Junglers, sem esquecer do político Ebrima Solo Sandeng.

Outra coisa é uma CEDEAO moribunda, incoerente e sem qualquer credibilidade perante os cidadãos dos seus próprios países. Portanto, esta medida inédita da CEDEAO constitui em certo ponto uma tentativa de resgatar alguma credibilidade que perdeu e de que maneira, nos últimos anos.

OD: Que medidas específicas a CEDEAO pode tomar para garantir a eficácia e a imparcialidade do tribunal e como essas medidas podem influenciar a confiança da população na justiça?

BT: Os tribunais criminais especiais devem cumprir determinados padrões internacionais de direitos humanos. Desde logo, as suas atuações devem respeitar os princípios do duplo grau de jurisdição (possibilidade de a decisão ser objeto de apreciação por tribunal de recurso), a exclusão da pena de morte, a observância do princípio do non bis in idem (proibição de alguém ser julgado mais de uma vez pelos mesmos factos) conformando a subsidiariedade ou complementaridade que caracteriza a atividade da jurisdição internacional. Ou seja, aqueles criminosos que já foram julgados pelos tribunais nacionais da Gâmbia e de outros países como a Alemanha, não poderão ser julgados novamente pelo futuro tribunal especial que a CEDEAO decidiu criar.

Para além destes aspectos técnicos, este processo vai levar algum tempo, porque irá obrigar à aprovação de novas legislações, o próprio estatuto do tribunal, o recrutamento de juízes internacionais e funcionários judiciais, a investigação dos casos concretos, entre outros. Significa que, da criação do tribunal, o seu funcionamento e as condenações poderão levar décadas. Contudo, o importante para mim, é lançar esta mensagem clara de que a impunidade não pode prevalecer em lado nenhum.

OD: Qual é o papel das organizações da sociedade civil e da comunidade internacional na promoção da justiça transicional na região, e como podem apoiar o tribunal da CEDEAO em sua missão?

BT: As OSC desempenham um papel fundamental neste processo. Repara que meses após a queda do presidente Jammeh, as vítimas do seu regime brutal criaram uma associação das vítimas que desenvolveu várias iniciativas de reivindicações para exigir a realização da justiça. Além disso, várias organizações internacionais tais como a Amnistia Internacional, a Federação internacional dos Direitos Humanos, a Human Rights Watch e demais outras contribuíram de que maneira com os seus relatórios e pressões, para adopção desta decisão da CEDEAO.

OD: Acredita que este modelo do tribunal especial criado por organizações sub-regionais, regionais e internacionaispode funcionar na Guiné-Bissau para julgar crimes de assassinatos militares, do antigo presidente da República, antigo chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, altos oficiais militares e de políticos ocorridos no país desde a independência até a data presente?

BT: Acho que sim, até porque se os sistemas judiciários são frágeis nos países como a Gambia, Ruanda e outros, incapazesde julgar crimes horríveis, as instituições judiciais da Guiné-Bissau são moribundas, corruptas e inócuas. Creio que os crimes de sangue e demais outros contra a humanidade cometidos no país podem perfeitamente ser julgados por um tribunal especial, como forma de estancar a impunidade institucionalizada no país.

OD: Em que condições que iniciativas de gênero podem serconcretizadas na Guiné-Bissau, ou seja, deve passar por uma solicitação política ou é possível a sua implementação por meio da solicitação de organizações da sociedade civil…

BT: Em primeiro lugar tem de haver a vontade política interna, ou seja, a seriedade e o consenso alargado de que o círculo vicioso de assassinatos, torturas, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias devem ser investigados e julgadas para devolver a esperança ao povo e restabelecer a confiança nas instituições vitais do país. Infelizmente, o poder que temos hoje não tem interesse nisso, porque ele próprio é autocrático e tem cometido crimes abomináveis contra os cidadãos, tais como a tortura.

OD: Quais são os principais desafios que pode prever na implementação deste tribunal especial na Guiné-Bissau e na condução dos julgamentos dos crimes de assassinatos de militares e figuras políticas ocorridas em diferentes períodos?

BT: Os desafios são comuns. Em primeiro lugar, tem de haver um consenso largado ao nível interno em torno da criação deste tribunal, e em segundo, temos de solicitar a CEDEAO, União Africana ou as Nações Unidas para nos ajudar a institucionalizar este tipo de tribunais. Igualmente, temos de mobilizar os meios financeiros junto de parceiros internacionais para suportar os encargos de funcionamento deste tipo de tribunais. Por fim, temos de proceder às reformas legais para conformar o nosso quadro jurídico com os padrões internacionais relativos à criação destes tipos de jurisdições penais internacionais.

 Por: Assana Sambú/Tiago Seide

Author: O DEMOCRATA

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