Crônica: O ROSTO AMARELO DE DEUS

Estávamos em 2008, na capital mundial da moda, a cidade de Milão, na Itália. Na altura, estudava Direito, na Universidade Católica de Milão. Mas como tinha aportado nesta cidade em Setembro de 2007, o primeiro dia me pareceu deslumbrante, uma metrópole muito bonita e exuberante, onde conviviam duas belezas arquitetônicas, a antiga e a moderna, como se se tratasse de um perfeito hino celestial.

Lembro-me que na noite de Natal de 2007, quando já na cama, dominado pelo sono, de repente senti uma presença de vulto humano. Ao esboçar uma reação, senti uma picada de injeção, adormeci num abrir e fechar de olhos. Sei quem o fez. A imagem que passara rápida na minha memória visual dava-me por duas pessoas – canalhas da máfia bissau-guineense.

Pessoas que cujas vidas servem para destruir outras vidas. Vivem disso, e são pagas para isso.

Nesse vai e vem dos dias, semanas e meses, estourei-me um dia destes em pleno campus universitário, no Largo Gemelli. Perdi o rumo, pois não tido o cuidado – mais que suficiente – para achar o meu prumo. Fui, a cada dia que passava, caindo no abismo da solidão. E, à cada noite, uma tortura psíquica e psicológica sem precedentes.

Não tinha como mensurar o tamanho da encrenca em que me meti mas sabia que as mãos ocultas que benzem pessoas, são as mesmas mãos que as assassinam. Está dito. Cabe a cada leitor tirar as suas conclusões, se é que as possa tirar.

Optei, então, por procurar abrigo nas mãos de um sacerdote, marginal e assassino, que já estava há anos a minha espera. Há anos estava a seguir-me, tanto é que mo disse que tinha chegado, em missão à Guiné-Bissau, nos idos anos de 1972. Portanto conhecia-me. Coçou a barba, e riu-se. Pois, para ele, o meu destino tinha chegado ao fim.

Fitei-lhe bem no fundo dos dois olhos de filho da n’hamañ que ele era, e ri-me também. Estávamos em guerra: um sacerdote e um ex-candidato ao sacerdócio. A partir daquele momento, disse para mim mesmo, tenho que fingir-me de derrotado que é para poder derrotar este canalha.

Para isso, celebrei um pacto de amizade com ele. Fiz-me amigo dele, e ele fingiu-se ser meu amigo. Armou o plano dele, e eu, o meu.

Entre um passeio e outro na cidade de Saronno, decidi então que voltaria para a Guiné-Bissau, desistindo de concluir o curso de Direito. Mas que, impreterivelmente, passava rapidamente por São Paulo. Nisso, discordou de mim; pediu que viesse diretamente para cá, pois havia instruções em como ia proceder-me em Bissau. Disse-me mais: que para quê estudar, melhor é ir dar aulas no Liceu João XXIII, e que a cada mês dava-me um subsídio de 500 euros. Garantiu-me tudo isso e lembrou do seu caso quando estudava na cidade eterna – Roma-, e que até àquela altura nunca havia recebido seu diploma, e provavelmente não precisava dele.

Esbocei um sorriso sarcástico, e ironicamente, respondi-lhe com elevada educação:

– Padre precisa de Diploma? Não vai a concurso público e nem concorrerá para cargo num organismo internacional. Que acha?, ainda inquiri-lhe rindo de sua cara de imbecil.

Há imbecis também nos mosteiros.

Dias depois suspeitei-me que o meu telefone tinha sido grampeado, e provavelmente tinha um ship posto no meu aparelho de celular. Estava 24 sobre 24 horas a ser monitorado. Desfiz-me então do celular e de todas as comunicações, já que também os meus e-mails tinham sido bloqueados.

Sobrevivi à secreta sacerdotal.

  1. A misericórdia de Deus

O sono era profundo. Um sono de morte. Sem sonho nem sono. Alguns delírios irreais. Algumas substâncias reais. Era um misto de sonho e delírio em que tudo parecia escuro e ao mesmo tempo claro. Queria dormir sem pensar, e nem sonhar em nada, e nem com nada. Mas era impossível.

Passados alguns minutos em que meus olhos se abriram, vi uma multidão de pessoas, todas elas, maioritariamente negras. Estavam diante de um velho que, sentado numa turpesa, usava umas sandálias castanhas. Este senhor tinha um ar cansado, movimentava-se lentamente, mas não virava os olhos para olhar para cima, nem para os lados. Tinha os olhos fitos nos que rezavam, nos que choravam implorando por ele, pelo seu perdão.

 

No entanto, também havia umas pessoas que só faziam o gesto de tocar a sua mão, rapidamente, e fugiam. Estas pessoas me pareciam que iam em busca de força para bater noutras pessoas.

Os pedintes, todavia, pediam sua misericórdia. Ele mantinha-se calado, apenas os olhava em seus rostos, inundando suas vidas de boas energias.

E eu, quieto, no meu canto, foi então que vendo o velho com a maior atenção possível, percebi que era ele: DEUS!

Tinha um rosto amarelo. E apercebi-me que ele morava noutro lado do rio, só não sei o nome do rio, nem do lugar. Não havia tempo para isso. Já sabia, Deus não era nem branco, nem preto; ele tinha um rosto bonito, singelo, longo, cabelos brancos, mas seu rosto era amarelo.

O amarelo é cor de Deus. Basta olharmos para as cores do arco-íris para apercebermos da dominância desta cor. É o amarelo que se destaca das demais cores, porque divina. 

  1. Os gestos de Deus

As pessoas não acreditam, mas estou a dizer a verdade. Deus salva um homem através doutro, e vice-versa.

Para isso, meu caro leitor, dou-te neste chão de oferta o seguinte poema de minha autoria quando pisei a Itália pela primeira vez, e fi-lo em homenagem à cidade de Milão, a seus habitantes nacionais e estrangeiros, através da metáfora do rio qua atravessa toda a cidade, il naviglio.

Deus nos olha com os mesmos olhos com que olhamos para ele. Só que a diferença é que temos olhos, mas não vemos nada do que nos mostra ao nosso redor; e quando vemos não reparamos para as coisas por mais ínfimas que sejam.

Degusta, então:

Em ti, milano-mundo…

naviglio fio de vida
navio rio
barcarola
córrego fluindo
que consola as almas a sorrir
a toa talvez camisola rota
flutuantes portos de palavras
temporalidades e existências
vãs e contraditórias e desierarquizadas.
olhares (in)certos,
motivados pelo desejo,
que apontam para certos rumos
agora colocados no plural
neste aprontar da vida para a longa jornada
no outro lado do rio.

a travessia do rio
como um voltar ao ato existencial.
lá está a luz;
seus braços são como remos,
não os remos do pescador solitário,
mas os dos pescadores todos desta aldeia-cidade berlusconiana.
não há rios, nem fluxos; apenas represas que se fecham
e não se abrem, de jeito nenhum, para a sociedade.
há terrenos baldios por onde circulam a miséria
quem dera… meu irmão… quem dera…
imigrar fosse integrar.
em meio a este mundo de lágrimas,
nem tudo esta perdido,
ah, ia me esquecendo, há um copo vazio;
portanto, há esperança
no simples gesto de perseguir uma luz do outro lado do rio.

ir a beira-rio e voltar numa canoa – deve ser bom
principalmente quando se rema contra a corrente
da banda larga, geografia interior deste mundo moderno:
suficientemente larga,
larga capaz de confundir
e fundir fluxos do rio,
em pedaços de muita cultura.
pela potencialidade subjetiva,
e, em sua esteira, a utopia concreta,
a travessia para uma outra margem
e as interfaces deste grande rio
nas bandas de lá
na vontade de pôr os pés no chão
donde deve circular a cabeça
neste mundo instável, mercadológico
lógico-filosófico
e também pedófilo
zoófilo por que não?
entre a pessoa e o meio,
parece haver uma descontinuidade,
um trajeto de indeterminações
nos rumos do lado de cá
enquanto Ele está no lado de lá
que pena… se desse mais ouvidos ao mundo…
gestos leves
misturando águas
no presente diálogo in absentia
questão agónica
de forma análoga.

as ruas labirínticas
nas quais se embala o rio-existência
para nivelar a diferença
nas correntes migratórias
dos agregados do capitalismo monetário contemporâneo
em que exteriorizar nossa vontade,
ou nossos desejos,
de certa forma, impulsionam nossos gestos
para um beco sem saída: o dos conformes.
o movimento,
flutuante, seguindo a correnteza do rio, ou contra ela corre
desagua na cidade como num porre
retilinear
da nossa ilha utópica chamada modernidade
que circula por entre as margens
que leva as riquezas de dentro para fora para, em seguida,
num movimento recursivo que e, ao mesmo tempo,
partida e encontro;
numa espécie de útero aquático,
onde se presume ou se espera aportar,

sem calosidades em pontes significativas
nada estáveis ao futuro que nunca e certo.
apenas descaminhos,
uma ponte que não conduz a nada,
própria da dinâmica das águas,
com seus fluxos e seus refluxos,
no flutuante reino do provisório,
do precário,
disfluxos – existe mesmo este termo?
margens a descortinar apenas,
em ti, milano-mundo,
a pena do apenas!…

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

Milão, outubro, 2007

 

Por: Jorge Otinta

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