Opinião: LÍNGUAS GUINEENSES PETICIONAM PELO RECONHECIMENTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

A língua é uma das principais, senão a principal, faculdade que impede o Homem de se manter no estado animalesco ou assemelhar-se aos animais. Além disso, é uma componente cultural fundamental para a afirmação social, política e económica de qualquer estado/nação moderno/a. Assim sendo, a Guiné-Bissau é um deste estado-nações que conta com cerca de 30 línguas e dialetos, dispondo, assim, de uma riqueza enorme para a sua sobrevivência, no caso de a saber aceitar ou aproveitar.

Na verdade, o país nunca teve coragem de experimentar o sabor da sua diversidade linguística, limitando-se a vê-la como uma ameaça à unidade nacional. Até parece que a língua em si que é o fator da nossa unidade, sendo que se fosse isso não teria a nossa independência o sucesso que teve. Dizemos isto, porque, após a independência unilateral em 1973, e o nascimento de uma Nova República, é óbvio que havia toda a necessidade de explicitar uma política de língua no país. Porém, essa oportunidade passou longe das línguas étnicas (nacionais).

Sendo isso digno de uma nota, eis alguns desafios que as referidas línguas enfrentavam e enfrentam (até agora): se se falasse na introdução de uma língua nos currículos escolares, isso abria alguma reação por parte de algumas etnias, alguns grupos: – Porque esta língua? Porque não a outra língua? – Depois vamos ensinar em crioulo. – Crioulo?! Tudo bem, é a língua de todos nós, mas muitos consideram que é a língua de gente de praça. – Então, balanta? – Tudo bem, é a etnia maioritária, mas todas as crianças têm o direito de aprender nas suas línguas maternas e balanta não é a língua materna de toda a gente. – Fula? – Ah! Também é a mesma coisa em relação à balanta. – Então, o português é mais fácil, mas é uma língua estrangeira?! – Sabemos, mas é apenas um instrumento para o domínio da ciência e evitava algum nacionalismo por parte de algum grupo ou outro em relação ao uso de uma língua e não da outra.

Fecha-se a questão como se fosse existir alguma língua para a ciência e outras não. É isso que fez com que essas línguas não só ficassem fora do sistema de ensino por falta de corpus (explicitação/grafia), mas também sem nenhum reconhecimento pela constituição da república em assumi-las como línguas nacionais e muito menos um compromisso do dever do Estado de as proteger, valorizar e promover o seu estudo.

Bem, é justamente neste último ponto que consiste a nossa petição em apelar às demais comissões de revisão constitucional que introduzam uma referência que reconheça as línguas guineenses e obrigue o Estado a assumir um compromisso de proteger, valorizar e promover o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas da Guiné-Bissau como acontece em outros países da CPLP.

Assim, vale destacar que a política de língua, relativamente ao português na Guiné-Bissau, ficou explicitada a partir do Decreto-lei nº 7/2007, de 12 de novembro de 2007, que obriga à utilização da mesma em todas as instituições públicas, nomeadamente nas escolas e especificamente dentro da sala de aula e nos recintos escolares, bem como delimitando a obrigatoriedade de quotas de tempo de emissão dos programas em língua portuguesa nas rádios e nos outros meios de comunicação áudio, estabelecendo igualmente as respetivas sanções, em caso de violação dos seus artigos 2.º e 4.º (nas instituições públicas e órgãos de comunicação social respetivamente).

Embora a Guiné-Bissau fosse o primeiro país a conquistar a sua independência entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e consequentemente o primeiro a afirmar a oficialidade do português, através da Lei n.º 1/1973 de 24 de setembro de 1973 (“Vigência da Lei portuguesa´´,doBoletim Oficial, n.º 1/ Sábado, 4 de janeiro de 1975, p. 7), até agora não introduziu essa referência na sua Constituição da República. Ao contrário da Guiné, podemos ver nas constituições dos restantes países de PALOP e da CPLP em geral essa referência: (Artigo 19.º – Línguas) “1. A língua oficial da República de Angola é o português. 2. O Estado valoriza e promove o estudo, o ensino e a utilização das demais línguas de Angola, bem como das principais línguas de comunicação internacional´´ (A.R.A., 2010, p. 9). O mesmo fez Cabo Verde, país irmão, cuja independência foi conquistada juntamente com a Guiné-Bissau: (Artigo 9.º – Línguas Oficiais) “1. É língua oficial o Português. 2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa´´ (A.R.C.V., 1999, p. 6). A seguir, na C.R. de Moçambique, podemos ver no (Artigo 9.º – Línguas Nacionais) no qual defende que “O Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade´´ (ARM, 2004, p. 2). Ainda no (Artigo10.º – Língua Oficial) da C.R. referencia que “Na República de Moçambique a língua portuguesa é a língua oficial´´ (A.R.M., 2004, p. 3). Optamos pela ordem alfabética, mas as introduções de referências foram feitas nos anos mencionados em cada constituição.

Além disso, podemos ver nas constituições dos restantes países o mesmo, salvo Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe. O (Artigo 13.º) referencia que “1. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil´´ (A.R.F.B., 2019, p. 25). Do mesmo modo que Portugal também fez a introdução na Constituição da referência ao Português como língua oficial de Portugal no ano 2000, na qual destacamos: (Artigo 11.º – Símbolos Nacionais e Língua Oficial), “- 3. A língua oficial é o Português´´ (A.R.P., 2005, p. 22). E, Timor-Leste também não ficou de fora, no (Artigo 13.º – Línguas Oficiais e Línguas Nacionais) defende as duas línguas “1. O tétum e o português são as línguas oficiais da República Democrática de Timor-Leste´´ (A.R.D. Timor-Leste, 2002, p. 11). De igual modo, gostaríamos também de ver a Guiné-Bissau a seguir o exemplo dos outros países irmãos, atendendo à diversidade étnico-linguístico que a compõe e carateriza a sua paisagem sociolinguística.

Braga, 29 de outubro de 2021.

Por: Professor Júlio Mário Siga, mestrando em Ensino do PLNM – LE/L2, pela Universidade do Minho, Portugal.

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Referências bibliográficas

Assembleia da República de Angola (2010). Constituição da República de Angola. Luanda: (s.n.).

Assembleia da República de Cabo Verde (1999). Constituição da República de Cabo Verde. Praia: (s.n.).

Assembleia da República de Moçambique (2004). Constituição da República de Moçambique. Maputo: (s.n.).

Assembleia da República Democrática de Timor-Leste (2002). Constituição da República Democrática de Timor-Leste. Díli: (s.n.).

Assembleia da República Federativa do Brasil (2019). Constituição Federativa do Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado S/A – IMESP.

Assembleia da República Portuguesa (2005, p. 22). Constituição da República Portuguesa. Lisboa: (s.n.).

Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau (1973). Lei n.º 1/1973 de 24 de setembro de 1973. Vigência da Lei portuguesa. Bissau: INACEP, Boletim Oficial n.º 1/Sábado, 4 de janeiro de 1975.  

– (2007). Decreto-Lei n.º 7/2007 de 12 de novembro de 2007 – Lei que regula a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa nos departamentos do Estado e nos meios de Comunicação Social audio-visuais públicos e privados. Bissau: INACEP, Boletim Oficial n.º 46 de 12 de novembro de 2007.

3 thoughts on “Opinião: LÍNGUAS GUINEENSES PETICIONAM PELO RECONHECIMENTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

  1. Levantou aqui uma boa questão, só que é preciso mais exigências não sei dizer aqui quem deve exigir. Mas suponho que deve ser juventude ou seja o parlamento infantil, por ter representação parlamentar não por isso, mas por representar a maioria.

  2. A não aceitação de uso das línguas étnicas nas escolas como forma de fazer que os alunos aprendam só o português é uma violação simbólica dos direitos deles, ou seja, é cancelar o desenvolvimento de suas culturas. Pena é que quando a língua que a pessoa compreende melhor, muita das vezes, não é nela que a sua escolarização é gerida.

  3. Excelente reflexão!
    O artigo é muito interessante.
    Deve a questão das nossas línguas nacionais (crioulo e línguas étnicas) merecer uma séria reflexão e análise na ANP, dando, aos linguistas ou estudiosos de línguas, o trabalho de estudo e elaboração de projeto susceptível de tornar instrumentalizadas as línguas nacionais em causa.
    Trabalho do referido género decorre das políticas públicas viradas para uma educação e um ensino recheados de avultados investimentos económicos.
    Para que o referido aconteça, deve haver a vontade política para se fazer chegar ao almejado porto, pois “não há ventos favoráveis para os que não sabem para onde vão”.

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