Literatura: METAMORFOSES DO PENSAMENTO POÉTICO GUINEENSE

Por: Félix Sigá

Tinham-me proposto “demonstrar” SE HOUVE OU NÃO MUDANÇAS NO PENSAMENTO POÉTICO DA GUINÉ- BISSAU no transcurso da nossa existência como povo livre e soberano. Ou seja, se a evolução da produção poética quanto aos temas, às abordagens, às formas, os modos como se passou a imaginar neste país, se o entendimento da mente guineense, se o espirito patriótico e a alma guineense evoluíram e como, ou se se estagnaram no espaço e no tempo, decorridos quase 40 anos de independência total. Exactamente o período em que não tínhamos mais desculpas de ocupação por outrém, do nosso chão, mar e céu.

Ora, recuei no tempo e abordei outros géneros literários porque estão entrelaçados                , na tentativa de ser mais abrangente. Por isso, ao falar no antigo palácio do governo, na rotunda da Praça dos Heróis Nacionais, comecei por afirmar (da minha conclusão portanto, mas resumindo como é da praxe) que sim, na verdade,

  • Houve metamorfoses a vários níveis e o quid positivo é mal contrabalançado pelo negativo, logo
  • Evoluiu significativamente o pensamento poético guineense e brilhou no período revolucionário da Reconstrução Nacional, sobretudo em finais da década 70, em que se começaram por publicar antologias e obras a solo de autores guineenses sobre a sua terra e o mundo e, mais tarde, nas entradas das décadas 80 e 90. Aliás, a prosa (re)nasceu em 1992 com dois contos da filóloga Domingas Samy, poetisa antologiada em 1990 e catapultou-se com a emergência de um novo valor criativo no panorama, o Eng°. Adulai Silá, o pai do romantismo guineense (cada país tem o seu), que publica em 1994, o bem sucedido romance inaugural “Eterna paixão” e de seguida “A última tragédia” e “As orações de Mansata” (encenado em 2013), ambos em 1997. Em 2013 lança “Dois tiros e uma gargalhada” já vem sendo bem comentado.
  • o processo de ideologização intensa (programas radiofónicos, jornal oficial e partidário: Nô Pintcha e O Militante bem como a introdução de formação militante nos currículos escolares de quase todos os níveis de ensino, palestras, comícios e reuniões regulares e extras, criação de mecanismos de elitização do cidadão sobretudo jovem engajado, com um roll de deveres e privilégios nas esferas do poder político, na obtenção de bolsas de estudo e de emprego, entre vários outros) transformou os espíritos das sociedades urbanas para que se aplanassem as assimetrias e os desníveis sociais e de entendimento dos dois grandes momentos políticos (guerra colonial, para a administração colonial/luta armada de libertação nacional para o PAIGC e a posteriori, por um lado, e a reconstrução nacional de outro) por forma a que se assentasse o poder novo cá, onde o movimento libertador agia tenuemente em clandestinidade, enfim propiciar a normalização social  (citadinos que regressavam e camponeses – muitos não conheciam a Bissau Capital convivendo em harmonia e sem discriminação negativa acentuada, com algumas imposições mais correctivas de situações pontuais). As regras do mato prevaleceram nas cidades: simplicidade no relacionamento com o semelhante, reconhecimento da importância do trabalho físico, sobretudo os camponeses, a cultura do discurso eloquente com expressões novas, negação da violência para a resolução de atritos, categoria social Camarada para a igualdade social.
  • Mudou, mudaram muitas coisas em vários domínios. Cada alteração expelindo as suas lições mesmo que poucos a tenham acolhido pelas suas capacidades mentais ou competências técnicas. Tínhamos fabricas de leite, de automóvel, de cervejas e sumos, o sistema econômico era planificado e centralizado (o Estado é que importava), o comércio era pior (o Estado é que exportava)
  • A natureza das mudanças também não é, nunca foi nem poderá ser uniforme, igualitária e igualável, ou linear – um emaranhado que nos transporta para o “au-delà de la realité subtile

DO NASCIMENTO(?), SURGIMENTO(?), EMERGÊNCIA(?), CRIAÇÃO(?), FUNDAÇÃO SEM ACTO FUNDATÓRIO(!) SOLENE OU MODESTO, OCASIÃO…

Ninguém fez nada com o propósito de fundar uma literatura! O primeiro a escrever na Guiné foi humilde: dedicou-se (como hobby) à margem das suas atribuições profissionais e de vocação, a auscultar as populações na então província profunda e registar as histórias e canções tradicionais transmitidas em dialectos de geração para geração, via oral. Fixou as que recolheu. Ora, ele produziu aquilo que sendo obra literária de preservação, não era obra de ficção fruto de imaginação individual, mas lendas ou fábulas, com todas as suas fantasias e personagens míticas, como em todo o mundo.   Agiu como um jogador que faz o primeiríssimo golo que resulta numa vitória do princípio e do fim da copa.

  • insubstituível nem contornável pode ser definitivamente.

Em todo o caso, a literatura nasceu de uma obra em prosa, da oralidade. O homem atravessou dois séculos: nasceu m 1844, publicou os primeiros trabalhos antes mas, foi em 1900 que o seu primeiro livro viria à estampa sob o título “A literatura dos negros”. Dedicava-se à pesquisa na área da etnografia, mas à par isso prestou colaboração em publicações com trabalhos esparsos de carácter literário. É dele a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações (114 anos depois, o país não tem um cancioneiro nacional) e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada “Contos, Canções e Parábolas”. Se calhar, não obstante a sua alta preparação académica, quando escreveu, não tinha a consciência de estar a fundar uma literatura de todo um povo, com os seus actos de anotar, tratar e tornar público o conteúdo do seu labor. Depois dele, o vazio de 50 anos, até surgir o Vasco poeta. Mas se a literatura da Guiné nasceu em 1900 pelas mãos de alguém, teve pai. Empenhava-se na luta contra a cólera e apoio aos necessitados e, mesmo quando o Governador foi assassinado, ergueu-se para moralizar a sociedade. Foi Bispo em Ziguinchor, Bolama,

O pai putativo digamos, da Literatura da Guiné-Bissau foi e é o Cónego MARCELINO MARQUES DE BARROS, prosador e investigador científico. Foi a primeira pessoa nascida neste território (em 1844) Que grande orgulho: em 1866 já tínhamos um padre FIDJU DI TCHON e era escritor!), a escrever trabalhos em prosa, de cariz literário. Pode ter sido o primeiro nativo formado padre católico. Eram recolhas de tradição oral que escreveu nas respectivas línguas e traduziu. Com rigor, não foram trabalhos da sua própria imaginação criativa, mas tornara-se o seu autor porque deu-lhes tratamento com base nas regras literárias.

Os precursores da Moderna Literatura Guineense no entanto, foram todos poetas e imprimiram-lhe um cunho novo, moderno pela Poesia: produziram poemas com função: COMBATE (político-ideológico), poesia sobre realidade actual (social e política). Versos livres, expressões directas eivadas de metáforas, anáforas, toponímias, sinonímias e vocábulos telúricos, poesia moderna própria, bebida nos estudos universitários e das vivencias da efervescência política na Europa, América e Ásia) do período neorrealista (Europa Ocidental, décadas 20 a 60). Corrente de que se apartaram António Baticã Ferreira, de Canchungo e Carlos Semedo, de Bolama, protagonizada por Vasco Cabral (de Farim, décadas 50 a 90), Amílcar Cabral (de Bafatá), Agostinho Neto (de Angola), Alda do Espirito Santo (de São Tomé e Príncipe), Pablo Neruda, Garibaldi, Corsino Fortes, Hélder Proença, Tony Tcheka, Agnelo Regalla e outros raiavam o surrealismo). A Literatura guineense cingiu-se mais à poesia desde os anos 50 (o poema mais antigo dessa geração década 50 pertence ao Vasco Cabral) até à primeira metade da década 90, quando em 1994, Adulai Silá publica o bem sucedido romance inaugural “Eterna paixão”. Em 1997 publica mais dois: “A última tragédia” e “Mistida”. Na generalidade, até hoje, não passam de 10 os livros de prosa (entre contos e romances) publicados dentro e fora do país, postos de fora os ensaios e narrativas. Portanto, houve um vazio de 92 anos até a prosa ser retomada por uma mulher e, por coincidência, novamente contos mas estes, de inventiva própria da nossa amiga, que retratava a situação nos bairros e o estatuto da criança em mãos alheias, cantada por José Carlos Schwarzt (menino de criação), Justino Delgado (Nkudji e dokolma), Nelson Medina (Sol na kenta farroba).

Os seis poetas de O Poilão publicaram nos anos 60, os seus trabalhos no folhetim. Logo após a independência, em 1976, o Conduto de Pina lança em Lisboa, Portugal, uma plaqueta de poesia intitulada “Garandessa di nô tchon”.

19 jovens, meninos do Pindjiguiti aglutinaram-se na primeiríssima antologia poética “Mantenhas para quem luta”, em 1977. No ano seguinte, lançam “Momentos primeiros de construção” com 9 co-autores. Constituíam a terceira geração de escritores e segunda de poetas. O decano dos poetas e escritores da Guiné-Bissau, Vasco Cabral, então Ministro da Coordenação Económica, Plano e Cooperação Internacional, traz à estampa a sua colectânea de poemas “A luta é a minha primavera”, em 1981, seguido do Hélder Proença, que publica a valiosa obra “Não posso adiar a palavra”, também de poemas. E em 1990, a terceira antologia em livro: “Antologia poética da Guiné-Bissau” contemplando 16 autores vivos e falecidos, a partir de Amílcar Cabral, e em 1992, é a vez de uma antologia temática: “O eco do pranto – a criança na moderna poesia guineense”. Depois sim, vieram muitas colectâneas de poesia colectivas e individuais. Estou a preparar um quadro inventário, como o que havia feito em 1993, sobre a música, pelos 20 anos de produção discográfica na Guiné-Bissau, publicado na revista Tcholona, desta feita para a literatura (cinjo- me nos géneros que lhe são próprios: poesia, romance, teatro, conto, ensaio literário e crítica literária). Isso permite situar os pesquisadores estudantes e estudiosos nacionais e estrangeiros.

A guerra civil de Junho de 1998/9 fez regredir o conteúdo, a forma e o corpus poético devido ao novo campus que irrompeu com a sua eclosão. Todavia, evoluiu-se em traje, linguagem, penteado, alimentação, construções, reestruturação de comunidades rurais e de sociedades urbanas, com o inexorável êxodo intenso que ruralizou até a Capital. O pensamento poético procurou espelhar essas depurações em cada fase. Exigente que é, a poesia, muita juventude seguiu as pegadas da geração do trio Vasco Cabral, de Farim; Amílcar Cabral, de Bafatá; Baticã Ferreira, de Canchungo; produzindo exuberantes quantidades de poemas. Ao nível da divulgação, além de uma dezena de programas radiofónicos, apenas houve uma revista editada pelo GREC, com o apoio sueco, em aproximadamente 5 anos: Tcholona.

A juventude já publicou duas antologias poéticas juvenis em 2009 e a terceira virá à estampa brevemente (2014), sempre com vintenas de participantes. A título individual, cerca de 10 autores publicaram livros.

O terceiro romance do Adulai portanto, é “Mistida” (interesse, numa tradução livre do crioulo). O pai do romance da Guiné-Bissau recidivou no pioneirismo, ao publicar esta primeira obra de teatro que até lhe fora encomendada pelo Programa Cena Lusófona, promotora do teatro no espaço CPLP, ministrando cursos a actores e promovendo espectáculos e consolidação de companhias teatrais, desde os anos 90 em que eu dirigia a Cultura. Vai daí a dizer clara e precisamente que o Adulai Silá é, também, o pai do teatro (escrito, em termos literários) da Guiné-Bissau. Temos alguns dramaturgos licenciados, como o Carlos Vaz e uma  senhora de cujo nome não me lembro agora – e são poucos porque não é fácil graduar-se, entre outros, pois, tem matéria clássica das mais abundantes, como na área da música que, muito exigente, em que devemos ter menos de 5 licenciados como José Manuel Fortes, no país e na diáspora. O problema é que tem que associar-se o curso teórico à pratica que implica exercícios físicos persistentes para manter-se o corpo ágil. O Silá recebeu um galardão do Governo da França pelo quarto livro lançado no ano passado “Dois tiros e uma gargalhada”.

Antes de mais, quero dizer claramente que é o sentimento de pertencimento (todo ele fulcral e subjectivo) à uma pertença que também nos pertence – Pátria -, que, na sua magnânima dinâmica interior e sub-reptícia, enforma a superestrutura… o sacro patriotismo… que consubstanciamos ora firmes ora não, em actos, atitudes e concientização. Confere-lhe sentido (ideologia do partido no poder fundada no patriotismo  abusivamente direi, as particularidades filosóficas que constituem as raízes da razão da nossa existência e, simultaneamente, a essência do que somos, porque assim é e diversos aos demais povos do mundo, com as nossas matizes culturais (cultura produtiva agropecuária e artesanal – tecelagem, olaria, escultura, pintura e outras formas plásticas -, cultura musical, literária, teatral, cultura desportiva, com os nossos instrumentos e, voltando aonde começamos, cultura social – como nos organizamos e somos em comunidades e sociedade, as formas estamentais rurais e citadinas – a própria fala a 40 ou a 20 variantes, cultura económica, cultura política, e assim por diante).

Devo dizer que se a inventiva humana (literatura, teatro, pintura, escultura, cinema, moda, música, dança, traje, gastronomia, linguística, arquitectura, etc) é portadora de traços de um determinado lugar confinado a um território próprio, ocasiona identidade. Logo, Cultura. E cultura telúrica e universalizante. O que acontece em nós, cá, na latitude côncava e convexa dos nossos corpos de humanos, sucede nos peitos de toda a gente, de outros povos no mundo: já se sabe!

A passagem (portanto, mudança) da Província ultramarina da Guiné Portuguesa para a República da Guiné-Bissau – suma ratio – foi, de jure (Boé 1973) e ipso facto (Bissau 1974) a fátua transfiguração política (logo económica e sociocultural) da nossa identidade africana! Acto de que decorreu o desprendimento imediato do nosso corpo, mente e espírito dos símbolos do poder colonial para fixação nos da nova Pátria. Donde de portugueses de África tornamo-nos guineenses africanos, por força de uma declaração política do poder colonial que, reconhecendo o Estado soberano da Guiné-Bissau, dá-lhe tudo como se devolvesse tudo o que retirara ao PAIGC, legitimo representante dos interesses do Povo unido da Guiné-Bissau.

Se bem que não se pode falar de um retorno à identidade original porque os povos estavam dispersos  e viviam em pequenas comunidades, além das reminiscências do período do Império de Kaabú antes dependente do do Mali, em relação ao período colonial, pois, também, o Império de Gabú (como se passou a designar por actualização) tinha outras fronteiras que abarcavam o Senegal, a Guiné, talvez mesmo a Gâmbia, mas não os territórios das grandes etnias animistas, particularmente Balantas (originariamente Brassum, incluindo todos os seus subgrupos que compreendem os quentôhe, de fora, mané, mansoancá, nagá, phâtch, psofá, kntsie e knânte), Manjacos (que se ramifica por   mandjak, ussao – pepel – e mankânh – brame) e Bijagós. Cada uma destas três componentes tem dezenas de micro-grupos, organizando-se política, social e religiosamente em conformidade, até porque são todos gerontocráticas.

Voltamos a ser, isso sim, africanos da Guiné (Bissau) mas, já imbuídos de consciência patriótica nacional. Por isso, a globalização dos habitantes deste território foi iniciada pelos colonialistas, que uniram todos os grupos étnicos em torno da sua administração. E isso foi fatal ao poder colonial na medida em que provocou a emersão de um idioma intermédio e catalizador dos dialectos étnicos que, em junção natural com o português dessa altura (arcaico), formou-se o kryol ou crioulo. Não foi obra dos portugueses que até nem gostam dele e desvalorizaram-no sempre. Uma sociedade miscigenada surgiu do mesmo processo de união que o colonialismo aproveitou para sintetizar via destribalização, com a elitização da nova e neutral camada social que, baptizada e vivendo sob padrão europeu ocidental, facilitaria a intermediação dos contactos com o Indigenato. Criou-lhe um estatuto cheio de regras de procedimento e apelidou-a de Assimilado. Muitos esforçaram-se para ascender ao novo nível social.

Félix de António e Pelegré Sigá

Exertos de uma Palestra em Marrocos

 

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