Opinião: QUAL DEBATE DO POLÍTICO SE ESQUIVA NA GUINÉ-BISSAU?

A democracia Guineense entrou em crise antes mesmo de se consolidar. Desde a instauração do Estado pela conquista da independência e tentativas de forjar um projeto político nacional de desenvolvimento que refletisse a diversidade que comporta as condições reais nesse território, a Guiné-Bissau seguiu por caminhos que lhe colocaram em uma situação precoce da institucionalização de um regime político contrário àquilo que lhe serviu de base para a fundação da sua soberania política. 

Sua ínfima participação na ceia que se distribuía logo após ao fim da bipolarização, um evento que se iniciou com o confronto ideológico entre duas maiores potências do final do século XX – então Blocos Socialista e Capitalista, sinaliza um momento importante na sua vida política. Porém, o processo de domar esse sistema político para realização do bem coletivo é até presentemente um autêntico fracasso. Um fracasso que assombra a vida política, organizacional e institucionalização de políticas públicas inadiáveis a toda população por falta de responsabilidade e responsabilização da classe política governativa que não só têm feito tudo para partidarizar a classe militar, como também a de justiça, dos setores administrativos e empresarial no país.

É relevante observar que a chegada da democracia amenizava, de certa maneira, sentimentos que nasciam de um esquizoidismo estapafúrdio que crescia com as tentativas de inventar a Nova Nação, ao invés de intensificar os esforços para incentivar uma educação cívica que não diabolize as condições sociais, culturais e políticas precedentes ao colonialismo. Não façamos aqui o culto ao museologismo dessas categorias e nem tampouco um hibridismo acrítico. Mas, fundamentalmente, pensar nas condições reais em que nós nos inserimos.

Hoje, tornou-se normal noticiar sobre os espancamentos, prisões e assassinatos de adversários políticos, ativistas e pedidos de asilos nos órgãos internacionais representados no país e países parceiros da Guiné-Bissau. Convive-se com uma onda de repressão aos manifestantes que reivindicam seus direitos à educação e saúde, emprego, etc., pelas forças da defesa e segurança do país, que deveriam ter uma função de proteger os cidadãos e instituições públicas/privadas contra comportamentos identificados como ameaças à estabilidade sociopolítica e econômica, isto é, o bem-estar do país e da sua população Também parece que os órgãos da soberania e seus titulares não escolhem respeitar o que está plasmado na constituição quanto aos seus limites, possibilidades e responsabilidades no amadurecimento do sistema político para a viabilização da governação focada nos resultados Parece não existir mais oscilações quanto ao sequestro do público pelo privado e, enfim, mais preocupante de tudo isso é, sem sombra de dúvida, ser o próprio Estado quem seleciona quem deveria morrer, óbvio, os pobres ou aqueles que não têm algum ninho com influência no país. Adiado o seu destino, esses precarizados, para se salvarem, adotam como possibilidades sobreviver no estrangeiro e às vezes sem direitos assegurados.

Todo esse ambiente normatizado nos leva a seguintes questões: O que não está certo na democracia Guineense? Por que ela não consegue conviver com os pressupostos básicos que fundamentam esse regime político – contestação/participação? Onde está a sua particularidade e que elementos podem ser destacados e que explicam, mais ou menos, satisfatoriamente o ambiente democrático que se conhece desde o início da democratização da Guiné-Bissau? O que explica os comportamentos autoritários das instituições que se querem democráticas no país? Ademais, para onde asilou a legitimidade que reconhecemos ao poder representativo exercido por outros sobre nós? Enquanto membros pertencentes a esta comunidade política, a que medida correspondem as promessas feitas nas campanhas eleitorais de garantir e proteger os nossos direitos cidadãos com a efetivação das mesmas? Enquanto jovens, o que ainda nos oxigena a permanecer enérgicos para produzir gritarias inocentes e correr atrás das plataformas dos políticos nos momentos das campanhas eleitorais, para em seguida perder o fôlego quando o contexto suscita sair para as ruas em reivindicação do cumprimento das promessas feitas com todo o ‘pathos’ nos discursos políticos realizados nessas campanhas eleitorais?

Quando formos um pouco mais ao fundo, é natural que nos apareçam várias hipóteses quanto à imprevisibilidade do campo político e administrativo da Guiné-Bissau. Também é muito comum argumentos que tecem o facto de ser um sistema político importado, porém, talvez isso não tenha constituído o único dado importante para negociar a questão do fracasso de que a democracia no país tem sido alvo desde 1991. Contudo, já se vivia certa abertura política e um multipartidarismo limitado. Não há condições para refutar o fato de entrar a Guiné-Bissau na democracia sem um debate público sério sobre as condições, possibilidades e constrangimentos que a democracia poderia levar para lá, mas se questiona o seguinte: Havia prescrições necessárias para, caso houvesse tal debate, estar a população à altura de saber escolher o que seria melhor para ela? Ou seja, havia uma porção populacional de homens e mulheres com conhecimentos políticos, científicos e práticos do contexto político e internacional de que precisavam para decifrar preceitos que garantem decidir sobre a implementação ou não da democracia proveniente do ocidente? A elite política e acadêmica eram confiáveis/instruídos para tomar essa decisão para toda a população? São alguns questionamentos para pensarmos como chegamos a esse ponto.

A análise da precarização da condição da democracia na Guiné-Bissau precisa considerar alguns elementos importantes: o contexto político-institucional, descaramento dos atores político-partidários e o baixo nível da sofisticação ou consciência política da sociedade guineense. 

No que concerne ao ambiente político-institucional, percebe-se que ainda são muito evidentes dois dilemas. Por um lado, uma herança colonial traumaticamente transmutada pelas implicações obliteradas de um neocolonialismo, assimilacionismo e dependência exacerbada. Por outro, pairam as consequências que emanam das decisões políticas tomadas pelos atores político-partidário-totalitário na importação e implementação de sistemas políticos e econômicos enraizados nas culturas ocidentais sem que, no entanto, se observe primeiro as condições locais e possibilidades de adaptá-los à realidade guineense. Ainda mais, o gosto em driblar a constituição com marcas de fragilidade aparenta ser agradável. 

Quando constatamos os comportamentos dos atores político-partidários, rapidamente se percebe uma disposição enorme por parte destes em enganar a população embelezando suas exposições com discursos encantadores. Poucos conseguem apresentar um projeto com base no qual se solicita a confiança política a (re)eleição. E ao assumir os cargos políticos, enquanto representantes legítimos do povo, tanto no executivo, como no legislativo, transformam as instituições públicas em um lugar de ndongos mal afamados ou de facilitação dos seus negócios e interesses pessoais obscuros. Ademais, nas melhores das hipóteses, justificam as suas atitudes blasfemadoras com expressões do tipo “a política é jogo de interesse”. Isso, sem fazer uma interpretação crítica do cumprimento dos seus deveres assumidos em representação do povo, ou assumirem uma oposição que se considere digna do jogo político democrático. Com distinção, ainda estabelecem trincheiras em reclamação de cargos no governo enquanto descartam na lixeira com uma predisposição deslumbrante os interesses básicos que se constatam nas pautas do povo. Doravante, esse cinismo político tornou-se na nova regra de praticar a política pelos atores político-partidários.

Desse modo, um questionamento desencantado, lúcido e crítico que se pode formular de maneira consciente seria o seguinte: como nos podemos conformar com anulação do Ano Letivo nas Escolas Públicas do país onde estudam filhos dos empobrecidos, sabendo que os filhos dos responsáveis pela anulação do ano letivo estudam nas melhores Escolas no Ocidente com o dinheiro público? Quando morremos nos hospitais públicos por falta de condições básicas para tratamento de enfermos que em outros países já não se constituem necessariamente em problemas graves de saúde ao ponto de tirar vida humana, mas quando doer ao Presidente a cabeça, enquanto uma pessoa que deveria articular mecanismos para criação de condições almejadas à boa governança do país, vai ao tratamento nos melhores hospitais na Europa? 

O “déficit” que abala o sistema educativo e a cultura de anós tudu i ermon, ou até mesmo nô disal ku Deus, têm contribuído para uma formação a cidadania deficiente. E como resultado, ao invés de contribuir para a construção de um ambiente que procure cada vez mais pelos pontos de inflexão e melhorá-los, inventam-se uns robôs sociais, ou seja, sujeitos ideologicamente comandados pelos partidos e seus líderes a destruição dos seus próprios recursos econômicos e instrumentos políticos que poderiam servir-lhes de meios para melhorar suas percepções políticas através de uma educação cidadã que questione consciente  e consistentemente ao reivindicar posturas viáveis à materialização da accountability democrática da governação.

Portanto, é mais que premente que a população tome a iniciativa de questionar, reivindicar e exigir não somente respeito aos valores institucionais e democráticos que se encontram em um nível altamente precarizados, assim como as rédeas da efetivação de condições necessárias para a melhoria da sua condição social e humana. Não é uma tarefa fácil, mas uma das saídas para (re)construção de um Estado-nações que cumpra com a sua responsabilidade social e política para com aqueles que realmente necessitam. A Sociedade Civil precisa intensificar as reivindicações para a refundação e institucionalização de um sistema democrático que respeite as condições socioculturais e políticas guineenses, onde os direitos e deveres ou representantes e representados vão caminhar a um único e bom porto. 

Face à inércia das políticas públicas do desenvolvimento, a população, principalmente jovem, precisa ter a ousadia de enfrentar os dilemas entre permanecer ativistas partidários em defesa dos interesses dos partidos, sem qualquer predisposição crítica, ou tornarem verdadeiros/as ativistas produtores/promotores das necessidades do povo, imunizados de investidas de silenciamento que suscitam questões delicadas inerentes a genuinidade participativo no campo do associativismo cívico independente, o que não deve ser interpretado como convite a não militância dos jovens nos partidos políticos. Muito pelo contrário, é um convite a saber ser crítico para com os comportamentos da organização política de que se é simpático contrária aos interesses da maioria, pois só assim, acreditamos nós, a sociedade civil, em parte os movimentos sociais, poderão dar o passo certo em direção aos desafios visando contornar e impossibilitar o enfraquecimento político das suas estruturas organizativas face à velha tática de cooptação.

Por: Mamim Alfissene Baciro Baldé

Mestrando em Ciência Política pela UFBA- Mabbalfu@gmail.com

e

Moisés Domingos Correia

Mestrando em Ciência Política pela UFPI – ysneyomberg@aluno.unilab.edu.br 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *