
A dias assisti e li três notícias sobre o setor educativo, o anúncio de acordo para o início do grau de mestrado numa das unidades do ensino superior, a denúncia de um especialista em ciências da educação sobre as cobranças ilícitas feitas pelos docentes do ensino guineense e as reivindicações dos estudantes da Universidade Amílcar Cabral-UAC. Essas notícias chamaram-me atenção e como uma pessoa ligada ao sector por várias razões, senti interesse de deixar algumas notas sobre essas notícias e outras preocupações.
Começo pela notícia da denúncia e desde já congratulo e agradeço o especial Lamine Sonco pela denúncia, uma prática que quem (o Governo) tem a responsabilidade de a banir, mas não tem feito literalmente nada, pelo contrário tem sido cúmplice, através dos responsáveis das escolas, na sua execução; e outras entidades, como as associações/redes estudantis (e não me excluo, por ser ex. dirigente dos estudantes) que também deviam estar de pé para defender os alunos igualmente não têm feito o suficiente para o seu combate e muitas das vezes os dirigentes estudantis são partes dessa prática, infelizmente! O estado doentio e caótico da nossa educação não está apenas nessa compra ilícita, o nosso sector educativo vai de mal a pior e em todos os aspetos.
Noto aqui outras preocupações que se juntam com àquela prática:
A fuga dos alunos nas escolas públicas: no início deste ano letivo (não sei se os últimos anos são dignos de serem chamados anos letivos) fui ler num dos maiores liceus de Bissau e de passagem, passei a vista no quadro informativo, onde são alistados nomes dos alunos matriculados e as pautas e sendo início do ano letivo a diretoria daquele liceu acabou de fixar as listas nominais dos alunos deste ano letivo, pela minha surpresa, praticamente nenhuma lista tinha mais de 10 alunos em cada turma, apesar de eu ver todas as informações que demonstravam que aquelas se tratavam das listas nominais dos alunos, mas mesmo assim, duvidei e não acreditei naquilo que eu estava vendo, parecia-me que são listas de outras coisas ou de um curso qualquer e não listas nominais dos alunos que nós estávamos habituados a ter nos tempos que eu estudei no liceu. Para certificar, perguntei depois dois docentes de liceus diferentes, confirmaram que é assim nos últimos anos e disseram mais: um disse que algumas turmas dele não ultrapassavam cinco anos; e outro disse que no conjunto das turmas que ele tem, às vezes junta cinco turmas só para poder ter uma sala de aula digno de nome, mesmo assim não ultrapassava 20 alunos.
Fiquei chocado com o sucedido! Lembro-me nos tempos que estudei no liceu (que não é tão distante assim – 2007 a 2013), o nosso liceu, o Liceu Nacional Kwame N ́krumah (LNKN) era dos liceus que tinha menor número dos alunos nas turmas em comparação com outros liceus (Agostinho Neto, Barcelos da Cunha, Samora Moisés Machel e Unidade 23 de Janeiro, blocos I e II) e no LNKN a média dos alunos era de 40 por turma, outros liceus rondavam entre 50 a 60 alunos em cada turma, as pessoas que estudaram nesses liceus nessas épocas não vão me deixar mentir.
Sem aulas dignas de nome nos últimos anos, há uma fuga enormíssima dos alunos para escolas privadas e o nosso Governo, além de não dar a educação ao seu povo, que é o seu dever, não tem se preocupado em regular e controlar os reflexos que essa fuga tem. As condições das vidas da população não melhoram, mesmo assim, por quererem estudar, são obrigados a refugiar para escolas privadas “djitu katen”. Embora é de reconhecer o papel das escolas privadas, que têm substituído o Estado na sua missão de dar ensino à população, mas é notável nos últimos tempos um abuso dessas escolas, há um aumento exorbitante das mensalidades e algumas aumentaram as propinas quase em dobro do preço habitual e o Governo tem feito pouco para controlar isso.
Comércio nas escolas: é preciso definir a natureza das escolas, se são entidades comerciais ou instituições sem fins lucrativos, mas não há dúvida que as escolas públicas estão longe de terem a natureza comercial, mas infelizmente trabalham como “empresas”. Assistimos certas escolas que mudam os uniformes todos os anos, com a intenção de obrigar os alunos a comprarem cada novo ano letivo novo uniforme, visando ganhar lucros com essas vendas e esses uniformes não são baratos; e a mesma prática lucrativa acontece em relação aos certificados, que além de serem caros, certas escolas públicas, senão todas, com o patrocínio do Ministério da Educação, obrigam quem terminar 12º ano a tirar três certificados duma só vez (de 10º a 12º), mesmo que o aluno queira tirar apenas um, não tem direito a esta opção, é obrigado a tirar todos. Não consigo entender qual é o fundamento disso! Sem falar dos valores cobrados para exames de segunda época e de ditas provas especiais.
Abuso sexual: não falo deste ponto com ânimo leve e o refiro com muita dor. Muitos desconhecem a crueldade que as nossas meninas sofrem nas escolas. Com todo o respeito que tenho pelos docentes, que também sou, mas muitos docentes fazem aquilo que nem vou suavizar de chamar assédio sexual, mas sim ABUSO SEXUAL, obrigam muitas meninas a dormirem com eles para poderem passar de classe, e é um número muito significante e uma prática que se normalizou nas escolas. Há relatos de certos docentes que dormem com duas meninas de uma só vez em troca de notas para passagem de classe.
As escolas no interior do país: o nosso debate e o nosso olhar das coisas muitas das vezes restringe apenas a realidade de Bissau, deixando de fora outras partes do território nacional. A situação das escolas e do ensino no interior do país é deplorável! Além de falta de infraestruturas e que obriga muitos a andar Km e Km para irem às aulas, das poucas que funcionam deixam muito a desejar. Dos muitos problemas que enfrentam, realço aqui a questão dos docentes colocados no interior do país. As regiões continuam a ter grande insuficiência dos docentes, enquanto há uma colação excessiva em Bissau; em certas regiões, caso de Biombo e certos sectores de Cacheu e Oio esmagadora parte dos docentes não são residentes nesses locais, viagem todas as semanas para irem lecionar e voltar a Bissau, por quererem passar os fins de semanas ou terem mais dias em Bissau, em colaboração com as direções das escolas, fazem horários inadequados que vão lhes permitirem passar mais dias em Bissau, o que acaba por refletir na aprendizagem e qualidades dos alunos.
Quanto ao assunto de mestrado, a iniciativa é de louvar. A Guiné-Bissau é o único país de PALOP que não tem grau de mestrado e desconfio que deve ser o único na África sem este grau no seu ensino. Agora a questão é: estamos preparados e temos as condições mínimas para o seu início?
Quero acreditar e ser otimista que haverá condições para tal, mas não deixo de ter algumas reticências e deixar algumas notas que devem ser tomadas em conta.
Desde logo espero que haja até ao início do curso o quadro legislativo e regulamentar deste grau, porque até aqui o país não dispõe de nenhum instrumento jurídico específico que regulamenta o grau de mestrado. Acrescido aos instrumentos jurídicos, também os planos curriculares, os programas, a biblioteca e o corpo docente qualificado para tal. Infelizmente, em várias franjas e em várias instituições da nossa sociedade, incluindo no sector educativo, temos o hábito de iniciar uma determinada atividade, às vezes por motivações populistas ou de protagonismos, mas sem antes criar condições e estabelecer previamente as regras para o começo daquela atividade. Espero que isso não seja o caso desse mestrado, pois o Estado, além da sua responsabilidade de ser o regulador do sector, também deve perceber que sendo uma iniciativa primária, as instituições privadas vão o seguir nos próximos tempos com a introdução também desse grau nos seus estabelecimentos de ensino e se a entidade responsável não o fazer direito, outras seguirão o mesmo caminho torto e não haverá moral para exigi-las. Hoje em dia, com a evolução das novas tecnologias, todas as instituições de ensino no mundo têm sites e disponibilizam as informações essenciais nos sites: os regulamentos dos cursos, programas, horários, corpo docente e os currículos dos cursos. Seria importante que as instituições do ensino superior guineense iniciem a fazer o mesmo e seria um bom passo que os responsáveis desse mestrado nos colocassem essas informações ao público.
Outros problemas do ensino superior: é importante que o Governo, além deste passo de mestrado, preocupe e resolva os candentes problemas do ensino superior, que não cabem citar todos aqui, mas realço alguns:
A ilegalidade e falta de controlo das instituições privadas do ensino superior: o artigo 60º, nº2, da Lei de Base do Sistema Educativo afirma que “os estabelecimentos do ensino particular e cooperativo de nível superior só podem ser reconhecidos pelo Governo, sob forma de Decreto”. A maioria das instituições privadas do ensino superior guineense são ilegais, sobretudo aquelas que iniciaram o funcionamento depois da entrada em vigor da Lei Base do Sistema Educativo, pois poucas ou provavelmente nenhuma obedece este preceito legal. A mesma ilegalidade se verifica quanto à abertura dos cursos, cuja lei exige uma prévia autorização do Ministério da Educação, através da Direção do Ensino Superior, para depois os estabelecimentos do ensino implementarem os cursos autorizados (artigos 20.º e 21.º da Lei do Ensino Superior), mas tem sido contrário. Essas exigências legais não devem ser encaradas de ânimo leve, pois visam controlar a qualidade e as políticas públicas do Estado no sector do ensino. Antes da abertura duma instituição do ensino superior o Estado deve certificar através da entrega de dossiê completo do projeto de abertura deste estabelecimento e a decisão deve ser tomada por órgão máximo da Administração Pública, o Governo, e ainda estar submetido às regras do período experimental que estão na Lei do Ensino Superior; o mesmo deve acontecer com abertura dos cursos, que antes de iniciarem a ser ministrados, devem passar pelo crivo do Ministério da Tutela para ver a pertinência desses cursos para o país. A falta desse controlo tem contribuído no questionamento da qualidade dos formados no país. O ensino da saúde é um exemplo, a Guiné-Bissau tem três instituições de ensino que ministram o curso de Medicina, uma pública e duas privadas, é um dos poucos países que liberou o ensino da medicina ao ensino privado. Portugal cuja sua primeira universidade é de 1290 (a 733 anos) só a dois anos (2021) liberou o ensino da medicina à uma instituição do ensino privado, uma decisão que o Governo português tomou a revelia de parecer negativo da Ordem dos Médicos de Portugal e que suscitou muita contestação da sociedade portuguesa, por entender que aquela universidade não reuniu condições para lecionar este curso, e é uma das mais reconhecidas universidades privadas em Portugal. Não quero dizer que temos que seguir de igual forma outros países, mas olhando para o país que temos, será que podemos dizer que o nosso país tem condições ou há garantia de qualidade naquelas instituições privadas? Fica a pergunta para a nossa reflexão!
A carreira docente universitária: passado cerca de uma década o Governo continua a ter grande problema de aplicação da Lei de Carreira Docente Universitária desde a sua entrada em vigor em 2014. Uma lei feita pelo próprio Estado, estando ciente de todas as disposições que lá se encontram, pois ele mesmo que o elaborou, já há 9 anos, o próprio Estado não moveu nem sequer um passo para a sua efetivação! A ausência da organização da carreira docente universitária expelia a realidade da docência no ensino superior guineense. No nosso país, para ser docente numa escola de formação todos os critérios valem: amigos, parentesco, a falsificação de diplomas e por aí fora!
E o último ponto, referente a UAC, é de dizer que a situação dessa Universidade é um exemplo de como invertemos tudo na Guiné, o certo e o errado trocam as posições, o incompetente está na frente do competente, aquilo que deve ser referência torna-se no pior exemplo e o que deve ser encarado com seriedade é o mais banalizado! Uma Universidade que reabriu a 5 anos e já passaram ali 5 reitores, uma média de um reitor por ano, isso só por si mostra que podemos esperar tudo, menos avanço daquela instituição. Com todos os problemas que enfrenta, mesmo assim, a reitoria, quase todos os anos, tem aumentado os estudantes e os cursos, já agora com nove cursos em cinco anos de reabertura, o que tem resultado numa desorganização dos anos letivos.
Mas essas dificuldades não se restringem apenas à UAC, além das instituições do ensino superior pública suportadas pelas parcerias com outros países, aquelas que estão completamente sob suporte do Estado guineense enfrentam enormes problemas e com uma qualidade muito abaixo do nível.
Concluindo, o país tem aumentado, seja no ensino básico e secundário, seja no ensino superior, a quantidade dos alunos/estudantes que frequentam a escola e os que formalmente “formam”, mas a qualidade deixa muito a desejar e temos que reconhecer isso para podermos mudar para o melhor, e todos nós somos vítimas do estado em que nosso ensino se encontra.
Vamos ser sério com a educação, é a nossa esperança e solução para todos os nossos problemas.
Um pedido especial aos docentes do ensino básico e secundário: dado ao elevado nível de analfabetismo que a maior parte dos nossos pais e encarregados de educação se encontram; a pobreza extrema que nos abala; a desgovernação contínua dos nossos Governos; e pela responsabilidade que todos nós temos para com esta sociedade, que sejam nossos os pais, irmãos, tios e encarregados de educação!
Ainda estudante da licenciatura, escrevi um artigo científico, publicado pela FEC e a Universidade Católica e que foi objeto de estudo alguns anos em uma das universidades do país (não sei se continuam a estudá-lo), o título do artigo é: Sistema Educativo Guineense: seus incumprimentos e deficiências, a versão PDF do Boletim Científico onde está este artigo pode ser encontrado na internet, através deste link: https://fecongd.org/pdf/BoletimCientifico.pdf, a partir da página 51. Chamo atenção ao seu contexto, evoluções dos factos narrados e do seu autor. Recomendo a sua leitura para mais conhecimento do sistema educativo, não só guineense, como doutros países ali abordados.
Por: Ericson Ocante Ié
Cidadão guineense
Subscrevo-me o diz a respeito de abuxo sexual nas escolas, incluindo nas escolas Superiores de educação, as nossas meninas sofrem disso, jornalistas têm que incerir nas escolas de formação não região para melhor tirar informações…