
Cada vez que se coloca a questão da afirmação e emancipação linguísticas em África, há sempre uma perceptível reticência de muitos africanos (guineenses em particular)sobre esta perspectiva. Atrás da reticência e/ou prudência está a ideia em como uma ruptura com a língua estrangeira é inoportuna, na medida em que as nossas línguas não estão estruturadas (ou codificadas ) e desde logo não merecem ser colocadas ao mesmo degrau com as línguas estrangeiras.
Segundo eles, a perspectiva de ruptura linguística também levaria a um divórcio com a Ciência, pois a nossa ligação à Ciência seria “apenas” por intermédio das línguas estrangeiras, sobretudo europeias.
Para me demarcar desta abordagem, trago aqui três notas:
(1)- A língua, sendo o veículo por excelência de qualquer cultura, merece maior atenção e preservação. Não existem línguas inferiores e línguas superiores. Português, Francês, Inglês, Espanhol são línguas historicamente recentes, e a sua entrada para Ciência também. Antes delas, o Latim, a língua oficial do então Império Romano, tivera a grande fama de ser a língua da “civilização”, da dominação em todos territórios do império.
Não é possível falar da Ciência sem destacar as línguas egípcias com raízes africanas, nomeadamente, Hieróglifos, Hierático, Demótico e Copta. Essas línguas foram instrumentos de difusão de conhecimentos científicos cerca de 3 milénios no Egipto (antes das invasões dos Persas, Gregos, Romanos e dos Árabes). A Europa acedeu à Ciência através do Egipto, o inventor da mesma. Sem a luz do Egipto, a Europa não teria tido a mesma trajetória. O pensamento religioso da Europa (e de todo o Ocidente) também derivou-se do contágio egípcio.
(2) – A língua, devido à sua centralidade na conservação e difusão dos valores da cultura, sempre foi um meio de dominação. Uma das melhores formas de impor a dominação sobre um povo é por via do controle linguístico. O projeto da colonização de África, das diversas agressões que tivera, fora essencialmente assente no domínio cultural através da imposição linguística. O complexo cultural fora historica e metodicamente forjado, disseminado através da desvalorização do património linguístico dos povos africanos. Na Guiné-Bissau, a resistência à colonização fora também em grande parte uma resistência contra a imposição linguística. Eu continuo a afirmar que a Guiné foi ocupada durante cinco séculos mas não foi colonizada e um dos factores a essa resiliência é a rejeição da língua do invasor.
(3) – A crença em como a língua da Ciência é a língua do antigo ocupante está ainda enraizada nas mentes de muitos africanos e conterrâneos guineenses. Ensinar Matemática, Física, História, a uma criança na sua língua materna (e paterna), na língua da sua comunidade, cheira um mito. Falar Nalu, Beafada, Balanta, Mandiga, Kriolo, Papel, Manjaco com alunos na turma é considerado “anti-pedagógico”. A estruturação das línguas locais/nacionais é um desafio que o novo Estado (na Guiné- Bissau) não soube até aqui assumir com pragmatismo, seriedade e urgência. O uso da língua Criola no ensino e na Administração Pública, quiçá a sua oficialização é um imperativo que só depende de nós. Continuar a tirar desculpas é aceitar a perpetuação da dependência linguística e do neocolonialismo. O culpado não é o ocupante de ontem, o culpado é o nosso Estado. Cabo Verde, Ruanda (uma versão da sua Constituição da República está escrita em Quiniaruanda, língua nacional e oficial ao lado do Inglês e Francês), Tanzânia, Etiópia são exemplos de Estados que souberam operar rupturas necessárias na afirmação linguística.
Na Guiné, o mosaico linguístico fora uma realidade concreta e positiva que o processo que conduziu à emergência do Estado novo não conseguiu suprimir. Aliás, o próprio Cabral colocava a cultura e todas as suas manifestações, incluindo a linguística, no coração da revolução. Embora a escolha do Português como”língua oficial” da Guiné e Cabo Verde pode parecer contraditória à sua defesa das línguas locais, o seu apreço pelo criolo, Cabral, num seminário aos quadros do partido, explicava a opção pela língua portuguesa, referindo que “a língua não é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo”. Claramente, Cabral defendia o uso do criolo (e demais línguas locais) “mas só depois de ser bem estudado”…Portanto, o debate sobre o uso das línguas africanas esteve no centro da reflexão de Cabral e da liderança da luta. A questão central era saber em que língua se escrever no âmbito do Estado novo?
As línguas africanas não são inferiores a nenhuma língua no mundo. Um dos maiores cientistas africanos de todos os tempos, Cheikh Anta Diop, demonstrou a influência cultural dos povos africanos na edificação da civilização egípcia. Para o Diop, a Ciência não é propriedade de nenhum povo, é sim um património da humanidade. Sendo património da humanidade, qualquer língua pode servir de veículo da sua disseminação.
Claude Levis Strauss, francês, um dos proeminentes pensadores e antropólogos do último século(o seu destino papel na redefinição, reorientação da corrente estruturalista na Antropologia) afirmava em alta voz que não existem “peuples enfants”(povos pequenos). Todo povo tem a sua história e teve um contributo para a edificação da Ciência que começou em África.
Bissau, 4 de setembro de 2024
Por: Armando Lona