Analista, Abdu Jarju: “É O POVO GUINEENSE QUE VOTA E CABE-LHE PROTEGER E EXIGIR A SUA VITÓRIA, NÃO À CEDEAO”

O professor universitário e especialista em segurança e relações internacionais, Abdu Jarju, afirmou que a primeira coisa que uma missão de mediação observa num país onde ocorreu um golpe de estado é o ambiente que se vive nesse país, ou seja, ver se tudo está tranquilo, a posição da missão, segundo a sua explicação, terá em conta precisamente esse facto, por isso defende que é o povo guineense que vota e cabe-lhe proteger e exigir a sua vitória, e não à CEDEAO.

“É o povo que tem o poder, é o povo que vota e é ao mesmo povo que cabe sempre assegurar, proteger e exigir a sua vitória. Não penso que seja a CEDEAO a resolver este problema”, alertou o especialista, durante uma entrevista ao Jornal O Democrata, para analisar a situação da crise guineense e abordar as possíveis posições da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental sobre a transição de um ano proposta pelos militares, bem como a questão da divulgação dos resultados eleitorais exigida pelas organizações internacionais e a libertação dos políticos presos.

Jarju afirmou não acreditar que a CEDEAO venha a rejeitar o pedido dos militares para uma transição de um ano, tendo recordado na entrevista que o primeiro comunicado da CEDEAO a reagir ao golpe de estado na Guiné-Bissau foi “um comunicado muito carinhoso, que nada disse”, acrescentando que seria, para si, uma grande surpresa se a CEDEAO decidisse algo que obrigasse a uma alteração da situação atual.

O professor universitário reiterou que, na sua opinião, o que aconteceu no dia 26 de novembro se chama golpe de estado, afirmando tratar-se, na verdade, de “um golpe do antigo regime contra o povo da Guiné-Bissau, que se expressou claramente nas urnas”.

O Democrata (OD): Considerando as alegações do ex-presidente nigeriano, Goodluck Jonathan, sobre um “golpe cerimonial” e a facilidade com que Umaro Sissoco Embaló deixou o país, como avalia a credibilidade do golpe de 26 de novembro? E considera que estaríamos perante uma manobra política para interromper um processo eleitoral que apontava para a derrota do Presidente cessante?

Abdu Jarju (AJ): Não me preocupo tanto com a nomenclatura, mas sobre os efeitos. Para mim, aquilo que aconteceu no dia 26 de novembro chama-se golpe de estado. É um golpe de estado, que eu defino como sendo a usurpação do poder pela via de força num país democrático. Para mim, é um golpe do antigo regime contra o povo da Guiné-Bissau que se exprimiu claramente nas urnas. 

‎Na democracia liberal, a fonte do poder é o povo. Quem o quer tem de procurá-lo junto deste, se não, todo o resto é uma manobra que não se justifica numa democracia. Antes do processo de voto, já ouvimos do lado dos detentores de poderes, na altura, de que mesmo se a oposição vencesse, o poder não lhe seria entregue, mas ninguém tinha a mínima ideia de como isso poderia acontecer, e esperávamos por um conflito pós-eleitoral. Por isso, os acontecimentos dia 26 de novembro surpreenderam todo o mundo.

OD: O Alto Comando Militar justificou a tomada de poder para evitar que “narcotraficantes” capturassem o país. Como especialista, qual é o peso real do narcotráfico e das redes ilícitas nesta crise, face aos fatores políticos e eleitorais imediatos?

AJ: A história sempre demostrou que qualquer golpe que aconteça em qualquer país onde os militares tomam o poder,costuma-se arranjar um álibi para justificar a tomada do poder. Mas este argumento é muito leve. 

O sistema político Bissau-Guineense foi infiltrado pelos narcotraficantes desde 2008. E a classe castrense guineense não tem um registo limpo como uma folha branca nos últimos anos naquilo que se evoca como justificativa do golpe.

OD: A CEDEAO já suspendeu a Guiné-Bissau e exigiu o regresso à ordem constitucional, a libertação dos presos políticos e a conclusão do processo eleitoral. Perante o compromisso “vago dos militares de encontrar soluções” para estas exigências, que ferramentas concretas e credíveis de pressão pode ainda a organização utilizar?

AJ: Já sabem da minha posição quando se trata da CEDEAO, nunca espero algo positivo vindo dela. Um primeiro comunicado desta organização como reação ao acontecido no dia 26 de novembro não foi claro.

Quando os militares tomaram o poder no Mali, no Níger e no caso da Gâmbia em 2016, logo no primeiro momento a CEDEAO foi clara que não iria tolerar. No caso particular do Mali e do Níger, esta organização anunciou logo as sanções, mas isso não foi o caso aqui. 

Estamos perante um comunicado carinhoso, que não disse nada. Será para mim uma grande surpresa que a CEDEAO decida qualquer coisa que obrigue uma alteração da situação corrente. A questão é saber quem está por de trás do sucedido e a quem isso beneficia? Estamos perante declarações iniciais quanto à questão de ferramentas de pressão concretas que a organização poderia utilizar. 

Na minha opinião é que ela está limitada em termos destas ferramentas. Sabem quando um golpe acontece em qualquer país e que haja uma missão a chegar a primeira coisa que a missão observa é o clima vigente naquele país. Se tudo está tranquilo, a posição da missão vai ter em conta tudo isso. 

A primeira pressão nestes casos é sempre interna. É o povo que tem o poder, é o povo que vota. É ao mesmo povo que cabe sempre assegurar, proteger e exigir a sua vitória. Não penso que seja a CEDEAO a resolver este problema.

OD: A reunião entre a delegação da CEDEAO e as novas autoridades de Bissau não trouxe nada de plausível para os guineenses. Qual é a sua análise estratégica sobre a cimeira de emergência da CEDEAO marcada para 14 de dezembro? Que cenários são possíveis, desde uma mediação bem-sucedida até à imposição de sanções duras, e que países-membros serão decisivos nessa negociação?

AJ: Isso não temos elementos suficientes para apreciar e saber o que será a decisão da organização do dia 14 de dezembro e pronunciar-me sobre isso será fazer uma análise meteorológica e isso não no domínio de uma analista política séria. O que posso dizer, é que não acredito que a CEDEAO vá rejeitar esta oferta, o que se deveria fazer é acreditar na democracia e na vontade popular. 

Mas ao ouvir a entrevista do Presidente de Cabo Verde, que qualificou de complexa a realidade da Guiné-Bissau e que há uma necessidade de se cuidar, fico pessimista sobre a resolução favorável a esperança do povo guineense. Será um erro fatal da parte da CEDEAO aceitar qualquer arranjo fora do quadro de continuação do processo eleitoral?

Isso permitiria aos militares consolidarem o seu poder e nunca vão abandonar o poder depois de um ano. Se a CEDEAO fizer, o preço a pagar pelo povo será um sofrimento.

OD: Os militares estabeleceram um prazo de transição de um ano. Considera que a CEDEAO aceitará a transição de um ano ou manterá a sua posição de exigir a retoma da normalidade constitucional, através da divulgação dos resultados eleitorais?

AJ: Aceitar a transição de um ano seria igual a negação dos princípios democráticos evocados no protocolo adicional da organização sobre a democracia e a boa governança. Mas da CEDEAO tudo pode ser esperado. Como eu disse, faltam elementos para dizer o que pode acontecer no dia 14 de dezembro.

OD: Que papel podem desempenhar outros atores internacionais presentes no terreno, como a CPLP (que a Guiné-Bissau presidia no momento do golpe), a União Africana e a ONU, para complementar ou pressionar a ação da CEDEAO?

AJ: Com base no princípio de subsidiariedade da plenitude de força da CEDEAO, os outros atores são apenas acompanhantes da posição da CEDEAO, que sempre toma as suas decisões em função das diretivas ocultas que recebe dos que contribuem para a sua sobrevivência financeira, neste caso, as potências que têm seus interesses na Guiné-Bissau.

OD: Este é o nono golpe ou tentativa na Guiné-Bissau desde a independência. Em que medida esta crise reflete num fracasso mais amplo das arquiteturas de segurança e governação democrática na África Ocidental, particularmente na Guiné-Bissau e que lições devem ser retiradas para evitar a recorrência?

AJ: O caso da Guiné-Bissau é muito específico e não pode ser analisado no mesmo quadro como outros países Africanos. Qualquer análise séria sobre o caso da Guiné-Bissau tem que ter em conta a história política do país, do seu contexto particular, da sua sociedade e da sua transição política para o sistema da democracia e da adaptabilidade do seu regime semipresidencialista. 

‎Desde a sua adesão à democracia, a luta pelo poder da sua elite sempre ultrapassou os limites de uma competição democrática para chegar a níveis de ódio e isso polariza sempre o povo e qualquer que seja vencedor declarado, gastará um bom tempo a tentar reconciliar o povo. 

Para o sucesso de qualquer projeto de sociedade, um povo deve aderir na sua totalidade, se quisermos alcançar os objetivos de desenvolvimento. É por isso que é importante cuidar dos discursos que são esbanjados durante a campanha eleitoral.

OD: A crise na Guiné-Bissau ocorre num contexto regional frágil. Que impactos geopolíticos e de segurança, como o agravamento do tráfico de drogas ou a desestabilização de países vizinhos, podemos antever se a situação se prolongar?

AJ:  Mesmo que se prolongue não haverá impacto nos países vizinhos da Guiné-Bissau ou se houver serão modestos impactos que podem ser controlados.

‎OD: Olhando para além da diplomacia da crise, que reformas institucionais profundas — nas forças armadas, no sistema eleitoral — são absolutamente incontornáveis para que a Guiné-Bissau quebre, de uma vez por todas, este ciclo de instabilidade política e militar?

AJ: Acredito numa refundação do Estado guineense e não nas reformas parcelares. A natureza humana tem sempre medo da mudança, mais de trinta anos de exercício de um regime semipresidencialista que todos nós vemos que não funciona e ninguém tem a coragem de dizer vamos mudar este regime para ensaiar algo. 

Enquanto permanecermos céticos para a mudança, estaremos sempre a voltar para o ponto de partida. E enquanto estamos na concepção de que quem deve mandar é o sábio, o preparado, o civilizado, aquele que nasceu em Bissau, sem acreditar nos valores espirituais, patrióticos, estaremos sempre na política de divisão da sociedade entre os que devem mandar e os que não devem mandar. Uma sociedade dividida é uma sociedade polarizada que será sempre instável.

Por: Assana Sambú

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