Hoje acordei-me um tanto desolado. Desolado por sono mal dormido na noite passada. Um sono que pensava que fosse ser leve, porém acabou por constituir-se num verdadeiro pesadelo. Não conseguia pregar meus olhos que estavam em vigília constante, não apenas devido ao cansaço de não conseguir repousar-me, mas principalmente pelo dia seguinte – como sempre neste país – que tinha que enfrentar neste corre-corre bissauense.
Insónia, sonhos terríveis, o vira e vira na cama. Pensei que talvez fosse minha derradeira noite, mas não o foi. Se o tivesse sido não estaria a escrever este texto.
Para dizer que tanto a minha vida quanto a de muitos guineenses está ao relento. A cada dia, nos deparamos com mais lenha a pôr-se na fogueira, mais chances de o país estar à deriva, mais chances de o povo ir-se definhando na senda de uma vida (sobrevida? Ou sub-vida?) mal vivida com a sempre esperança de um futuro melhor que, a cada eleições, mata a fé no país.
O país dos outros continua a ser padrasto de seus filhos e pai dos filhos dos outros.
E é, por isso, que os que tínhamos por analfabetos é que comportam como alfabetizados, mas paradoxalmente, aqueles que considerávamos alfabetizados é que se transformaram em analfabetizados.
Coisas nossas, e que só poderiam ser ingénua e estupidamente nossas.
A cada dia que passa exemplos aviltantes assaltam-nos os olhos, e incrédulos que ficamos sem saber que rumo tomar, já que os que deveriam constituir-se nos nossos prumos desnortearam-se. Para a nossa decepção, é claro.
- Podres poderes
Tenho a impressão que nossos governantes gostam é de ocupar lugares cimeiros no aparelho do Estado nacional, ainda que estejam despreparados para o exercício das funções para que foram eleitos. Mesmo sabendo eles que não dispõem nem de faculdade intelectual nem de faculdade moral para assunção destes cargos.
Por intermédio de irans, balobas, muros e cartomantes lá vamos nós com eles a caminho da perdição na nossa humana condição de pobre ambição.
Assumem-se funções sem preparo para o efeito.
O exemplo flagrante é o que estamos a viver. Governantes a trocarem os pés pela cabeça, a interpretarem erroneamente à Constituição da República e as demais leis da República. Parece que não têm juristas capazes de os assessorar. Ou porque, por gosto incauto de ostentar o cargo, se recusam a ouvir seus assessores em relação à determinadas matérias. Ou porque a estupidez tolhe-lhes a capacidade de discernimento.
Dou um outro exemplo: no período da Transição houve um ministro, através de Despacho de Gabinete, que caçou uma Lei de Estado, aprovada na ANP, promulgada pelo presidente da República e, finalmente, publicada no Boletim Oficial.
Houve ainda outro num horizonte temporal anterior instituiu, também por Despacho de Gabinete, uma lei sui generis para institucionalizar um nível escolar – como se tivesse competência para o fazer. Vá lá que ministro tem que exarar Despacho, isto sim, pede-se apenas que se aprenda o ABC da Administração pública.
Em que país estamos? Porque se insiste em colocar analfabetos e analfabetos funcionais a ocuparem cargos de relevo na administração pública? Se, entretanto, fica-se a provar a cada governo a mesmice da burrice já conhecida?
- Foga di folgadu
Há tempos escrevi no meu livro Representações do Intelectual que a utopia necessária a todas as pessoas e a todas as nações compõe-se de dois princípios. Ei-los para a degustação do leitor:
- Sonho diurno que é igual estar-se acordado, isto é, manter-se em estado de vigília permanente, de modo que se possa atingir o princípio esperança. Pois é a consciencialização que atua na mudança de paradigmas do pensar e do ser sempre que necessário.
- Sonho noturno é igual ao ópio, ao embriagamento. Trata-se, assim, de pessoas que se eximem de suas responsabilidades enquanto cidadão: ña boka ka sta la. Ou seja, pessoas que parecem desconectadas com a rotina social, com tudo o que acontece no nosso país.
E estamos todos condenados a pagar esta conta, ainda que a fatura venha a ser altíssima. Pagamo-la a todos, sem exceção.
Disse em tempos que sonho que se sonha só é sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto, este é realidade, porque é passível de concretizar-se, de realizar-se.
Projetamos mudanças no partido, e logo a seguir, matamo-las no governo. Tudo em nome da mudança que este povo desconhece – para parafrasear o mestre Aliu Barry.
Antes de retirar-me oferto-vos um poema dum grande poeta português, Carlos Oliveira:
ESTALACTTITE IV, VI E VIII
Localizar
na frágil espessura
do tempo,
que a linguagem
pôs
em vibração
o ponto morto
onde a velocidade
se fractura
e aí
determinar
com exactidão
o foco
do silêncio.
Algures
o poema sonha
o arquétipo
do voo
inutilmente
porque repete
apenas
o signo, o desenho
do Outono
aéreo
onde se perde a asa
quando vier
o instante
de voar
Caem
do céu calcário,
acordam flores
milénios depois,
rolam de verso
em verso
fechadas
como gotas,
e ouve-se
ao fim da página
um murmúrio
orvalhado.
- À guisa da conclusão
Para dizer apenas que falta-nos a consciência patriótica. Falta-nos conhecimentos científicos sólidos. Desconfio que guineense estuda para tirar diploma para exibir-se, e não para continuar a evoluir intelectualmente. E, com isso, contribuir significativamente para o desenvolvimento do país.
Falta-nos o espírito de Utopia (do grego, Ou + Tópos) que significa, etimologicamente, sem lugar. Não temos, aliás, não conhecemos nosso lugar no mundo. Pois não nos perguntamos:
O que podemos fazer pela Guiné-Bissau? Em vez de esperarmos o que o nosso país tem a nos oferecer.
Utopia de que falo se trata, evidentemente, de um lugar sem chão de cão, mas com chão de consciência cidadã – um lugar que dá aconchego a cada cidadã e a cada cidadão.
Utopia é todavia um lugar com a promessa de um chão a se fazer, a erguer. Em suma, a se construir. É disso que precisamos. Precisamos de lideranças que não sejam nem avarentas – só venha a nós, vosso reino nada – quanto falaciosas – enganadora das consciências enquanto se roubam rios de dinheiro para depositar em terras estrangeiras.
Até a próxima, que o cronista precisa descansar, meu caro leitor d’O Democrata.
Por: Jorge Otinta, poeta, escritor e crítico literário guineense
















